o mesmo utensílio utilizado para a carnificina servia agora de talher. o pão era assim dividido entre os irmãos de armas. temperado com sangue, compartilhado, ‘con pán’. e daí nasceu o substantivo ‘companheiro’.
aprendo isto com um historiador de 64 anos, sentado na relva que intermedeia a ponte alexander dos inválidos, em paris. tão convenientemente poético aprender lições na cidade luz, assim chamada graças à sua fertilidade durante o iluminismo. por curiosidade e ironia, ela está hoje outonal. mesmo do terraço da tour de montparnasse, a 200 e picos metros de altura, aquela vista de 360 graus parece estremunhada por uma ressaca de domingo de manhã. mas vale a pena ou, como costuma dizer um amigo: ‘o melhor da vida é que temos sempre uma próxima oportunidade, excepto a da própria vida’. sei que hei-de voltar aqui para ver paris desde cima, em todo o seu esplendor tão radioso quanto chauvinista. hoje neblina, amanhã farol.
não morremos por isso, e portanto, muito ao contrário de napoleão – enterrado aqui defronte, no sumptuoso edifício dos invalides –, a doce modorra em que nos deixamos ficar, fumando, deixa-nos indecisos sobre ir até lá filmar ou não. não temos autorização, mas bonaparte também não a tinha e isso não o impediu de invadir portugal e quem mais lhe providenciasse um império.
somos companheiros, este grupo de meia dúzia, atrelado com câmaras e micros e tripés e demais artefactos de rodagem. a nossa batalha é um programa televisivo de história e as nossas armas são palavras num guião tão didáctico quanto entretido. daqui a nada vamos partir o pão e partilhá-lo num restaurante acima das nossas posses, enquanto fazemos o balanço de uma campanha de cujo caminho ainda nem um terço se cumpriu. o nosso potencial império são os episódios contratados e vale a pena o luxo de arriscar um whisky numa esplanada parisiense sem olhar primeiro o preço. anda louco este mundo, é a conclusão perante a conta – um arrependimento de que sempre nos recordaremos, entre gargalhadas e rubores, e dinheiro que obviamente sai da nossa carteira e não da produção.
não olhes para a câmara / falhaste a concordância / corrige o timing / não saias do foco / olha a marca / conta 3 tempos depois do ‘acção’ / aperta o botão da camisa, cuidado com o raccord / mais um take por segurança / a perche está em campo / atenção à dicção / espera que mudou a luz / falta o amorcé / repete igual no fechado / vamos fazer o insert / só falta o geraldão, não precisamos de lip-sync … são tantas as frases num jargão novo, aprender fazendo, crescer em público (como na canção de lou reed).
companheiros de suor e lágrimas, felizmente sem sangue ao barulho – e as segundas são de alegria. e cá vamos, de partida em partida, ‘take takinho takão’ (expressão curiosa dum realizador brasileiro), este fim-de-semana gravar cenas em paris. sentimo-nos durante horas verdadeiros cidadãos do mundo, habitantes de uma bolha mágica onde vive um universo paralelo ajudado pela pós-produção e montagem, fabricantes da fantasia.
somos generosamente devolvidos à terra específica sita num jantar em saint-germain, quando o nosso empregado se revela português perante o meu atabalhoado esforço para cancelar o verre du vin rouge e trocá-lo antes por uma boteille. as saudades que o homem tem de falar na sua língua materna, a paixão com que debatemos todos as incidências do europeu de futebol, e as fotos das três filhas – lá longe em loulé com a mãe francesa –, cada uma mais bonita do que a outra. «querem ser actrizes», diz, com comoção e ternura. «também nós», penso. e acaba sentado connosco na esplanada, terminado o seu turno, a partir o pão com seis portugueses de passagem, o nosso novo companheiro. chama-se paulo, e esta noite seguimos com ele na estrada para damasco – no desejo de sermos iluminados.l
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