Antony ao SOL: ‘A terra é o meu mundo espiritual’

Cut the World, espectáculo com preocupações ecológicas, traz de volta Antony a Portugal para um concerto com a Sinfonietta de Lisboa.

na quarta, 25, apresenta-se em cascais com a orquestra sinfonietta de lisboa. como surgiu o projecto?

comecei a tocar com uma orquestra sinfónica há cerca de três anos e tem sido uma recompensa intensa. tornou-se uma excelente forma de elevar as canções e de as reexaminar e reinventar, especialmente as mais antigas. acho que conseguimos acrescentar um peso novo às canções e estou muito entusiasmado por finalmente poder levar este espectáculo a portugal.

toca sempre com orquestras locais?

sim. é complicado viajar com tantos músicos e em termos ecológicos é melhor assim. mas a parte mais recompensadora é partilhar as canções com a cidade. é muito satisfatório porque cada país desenvolve uma relação própria com a minha música. curiosamente, foi em portugal que reparei nisto pela primeira vez. aí, as pessoas respondem sempre de uma forma mais emocional, criando pontes com a vossa música, o fado. acho que é porque sentem o mesmo tipo de melancolia.

os seus concertos são sempre uma viagem emocional muito grande. como se prepara para eles?

ponho a minha maquilhagem e estou preparado. nem sempre é possível dar tudo num concerto, mas estou a descobrir que, com a atitude certa, é mais fácil transcender as dificuldades que um espectáculo apresenta. recentemente tenho actuado em festivais ao ar livre, onde as pessoas falam muito. grande parte das minhas canções são muito calmas, mas tenho gostado do desafio de me ultrapassar em ambientes mais agressivos. à medida que vou envelhecendo tenho-me tornado mais forte e flexível.

prefere plateias silenciosas?

quando era mais novo não lidava bem com o barulho. perturbava imenso. agora já não me importo tanto. se as pessoas querem falar eu imagino-as como sons da natureza, árvores ou fantasmas.

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nesta digressão, inicia o concerto a falar sobre a humanidade. qual a mensagem que quer passar?

há cerca de dois anos senti um desejo crescente de utilizar as ferramentas que tenho ao meu dispor para falar sobre os temas que me interessam. e a coisa que mais me preocupa neste momento são as mudanças drásticas que a paisagem humana tem sofrido. estamos a provocar um impacto enorme na natureza e na biodiversidade e estou muito assustado com a ideia de viver num mundo cada vez mais solitário. muitos católicos acreditam que a terra é só uma paragem até ao céu, mas para mim a terra é o meu paraíso. é o meu mundo espiritual. foi aqui que nasci, sou feito dos elementos deste sítio e quero que ele se sustenha.

é, então, uma crítica ao nosso modo de vida?

sim. nos últimos cem anos acumulámos quantidades gigantes de conhecimento, mas essa inteligência é usada para destruir o planeta. parecemos bebés, que só sabem destruir, ou adolescentes que querem continuar a mamar quando o leite já acabou. há um ressentimento qualquer no subconsciente da humanidade, que prefere mudar-se para marte, e começar a terra do zero, do que render-se ao facto de que somos apenas minúsculos mortais. a criação maior de todas é a nossa própria mãe, a terra.

há solução?

não sei se há, mas o meu sonho é caminharmos para sistemas de governação feministas (no sentido mais vasto do termo) e encontrarmos em nós próprios, homens e mulheres, coisas que nos unam à terra. temos de começar a resolver urgentemente os elementos que nos alienaram deste sítio, como a ambição económica, o consumismo… há 40 anos, podiam ter dito ao meu pai que íamos provocar o aquecimento global e ele ia-se rir nas nossas caras. as únicas pessoas que acreditaram nas teorias do aquecimento global nos anos 60 e 70 foram alguns cientistas liberais. hoje, todas as avós do mundo, sejam do paquistão, afeganistão, nigéria ou antárctica sabem que a temperatura está a mudar e que o navio está a afundar. e os cientistas não conseguem contrariar isso…

associar estes alertas à sua música é o caminho que quer seguir?

totalmente. não são ideias novas, há muitos outros artistas a ter este discurso, mas eu quero acrescentar a minha voz. por isso, iniciei há pouco tempo, com os meus amigos em nova iorque, a future feminist foundation e tenho falado sobre isto nos concertos e nas entrevistas. quero lá saber se me acham um idiota pretensioso.

outra das suas lutas é contra a discriminação sexual. já se sente aceite pelo mundo?

como transgénero que sou – nunca me considerei um homem –, sinto-me uma pessoa abençoada. mesmo nos dias de hoje, é um milagre uma pessoa como eu ter a exposição que tenho e poder dizer o que penso. mas, ainda assim, sou uma ‘rainha branca’ porque há muitos transgéneros no mundo inteiro que não têm voz. se eu tivesse nascido no afeganistão não estaria a dar esta entrevista. ou se vivesse na nigéria ou no uganda já tinha sido castrado. as coisas estão a mudar subtilmente em algumas partes do mundo, mas noutras estão a dar-se passos atrás. até na américa há um fundamentalismo perigoso a crescer. quando olho para mitt romney [o candidato republicano às eleições presidenciais nos eua, adversário de obama] e oiço o que ele defende acho tudo grotesco.

alexandra.ho@sol.pt