Mundo em contra-relógio para regular comércio de armas

Países discutem até à madrugada de sábado nas Nações Unidas um tratado para combater o comércio desregulado de armamento. Principais exportadores de armas complicam negociações.

existem tratados internacionais para regular o comércio de bananas e de ossos de dinossauros, mas não existe qualquer convenção sobre a venda de armas. a constatação é da amnistia internacional, uma das muitas organizações da sociedade civil que defende a assinatura de um documento vinculativo sobre o comércio de armamento para travar o tráfico internacional, os conflitos armados e a criminalidade violenta.

esse tratado poderá estar a horas de nascer. as nações unidas passaram o mês a discutir o documento e aproxima-se o momento da verdade. até à madrugada de sábado, os 193 países envolvidos nas negociações têm de chegar a um consenso.

a expectativa de sucesso é no entanto limitada. na quinta-feira, o secretário-geral das nações unidas ban ki-moon expressou a sua preocupação pelos «progressos muito residuais» feito ao longo das últimas semanas e apelou a que os países «mostrem flexibilidade e trabalhem de boa-fé para ultrapassar as divergências».

tratado fraco vs tratado robusto

os países dividem-se entre a ideia de um tratado ‘fraco’ e permissivo e o projecto de um tratado ‘robusto’. a maioria dos países africanos e latino-americanos, vítimas recorrentes da guerra e da criminalidade violenta, defendem uma regulação forte. entre os principais opositores estão países como a china, o irão, a rússia, o paquistão, a coreia do norte, a síria e a generalidade dos países árabes.

uma primeira proposta de tratado posta a circular na terça-feira foi criticada por grupos de defesa dos direitos humanos por não incluir a regulação do comércio de munições e por não proibir explicitamente a venda de armas a países com parcas credenciais democráticas ou a movimentos suspeitos de terrorismo.

na quinta-feira, uma segunda versão da autoria do diplomata argentino roberto moritan já obrigava os países a certificarem-se de que o armamento exportado não será utilizado para violar direitos humanos.

um tratado internacional sobre o comércio de armas obrigaria os países signatários a criarem nos seus ordenamentos internos mecanismos de controlo do comércio doméstico de armas convencionais e sobre a sua exportação. desta forma, países exportadores como os estados unidos, a rússia e china estariam proibidos de vender armas a determinados países do médio oriente, áfrica e ásia, ao contrário do que ocorre actualmente.

se os países chegarem a consenso até sábado, o tratado será enviado à assembleia-geral das nações unidas. necessitará de ser ratificado por 65 estados para conquistar força legal.

resistência americana

dado que os países com assento permanente no conselho de segurança das nações unidas (eua, china, rússia, reino unido, frança) são precisamente os maiores exportadores de armamento, não surpreende que os maiores movimentos de oposição a um tratado se desenvolvam dentro dessas nações, apesar dos respectivos governos apoiarem a convenção.

nos eua, e com o apoio do poderoso lóbi das armas, um grupo de 51 senadores republicanos e democratas enviou na quinta-feira uma carta ao presidente barack obama e à secretária de estado hillary clinton a sublinhar a sua oposição a um tratado internacional que ponha em causa a constituição federal. em causa está a segunda emenda constitucional, que consagra o direito à posse e uso de armas e que tem sido utilizada como base legal para o livre comércio de armas nos eua.

a missiva visa sobretudo mobilizar o eleitorado norte-americano contra o tratado, já que não existe qualquer ameaça à constituição – nenhum tratado internacional se sobrepõe à lei dos estados unidos.

a polémica da posse de armas voltou ao debate público norte-americano após a tragédia de aurora, no colorado, onde um homem armado matou 12 pessoas que assistiam num cinema à estreia do novo filme da saga batman.

os eua são o país do mundo industrializado onde é mais fácil adquirir uma arma. é ainda o país com o maior número de armas por habitante em todo o mundo (88 por cada 100 habitantes), à frente de nações fortemente militarizadas ou com historial de conflitos armados como a sérvia e o iémen.

a três meses das eleições presidenciais de novembro, o recandidato democrata obama e o rival republicano mitt romney evitam o tema do comércio e posse de armas, considerado um assunto tóxico perante a oposição de uma fatia significativa do eleitorado e de importantes financiadores das respectivas campanhas.

há quatro anos, durante a corrida à casa branca, obama prometeu reinstituir uma moratória sobre o comércio de armas semi-automáticas, expirada em 2004. nada foi feito nesse sentido e a promessa está ausente da campanha de 2012.

comércio bilionário

segundo a amnistia internacional, os estados unidos produzem 34% das armas comercializadas em todo o mundo e são os seus maiores exportadores, seguidos da rússia, alemanha, reino unido, china e frança.

entre 1989 e 2010, entre 886.000 e 1.253.000 pessoas morreram em 523 conflitos armados. no mesmo período, até 1.200.000 pessoas morreram vítimas de repressão por parte dos seus estados e forças armadas. mais de 40 milhões de civis tiveram de deixar as suas casas devido a conflitos armados.

sobre portugal, a ai indica a existência de 2,6 milhões de armas de fogo, das quais apenas 54% são legais. 87% dos roubos cometidos nos anos de 2006 e 2007 foram perpetrados com recurso a revólveres ou caçadeiras. as armas de fogo são utilizadas em cerca de um terço dos homicídios registados anualmente.

pedro.guerreiro@sol.pt