Postais de Agosto

Última crónica antes de Agosto. Enviava postais por esta altura – outros tempos e fulgores de ânimo e escrita. Desenhava palavras para amores, família e amigos. Poucas frases, as suficientes para que não se esquecessem.

hoje, sentado numa esplanada, faço o mesmo. escrevo postais enigmáticos e envio-os, através de si, para alguns personagens principais.

a quem escrever primeiro?

«exmo. sr. presidente da república, professor cavaco silva,

um regime que apenas respeita o poder da maioria é uma democracia, disso não há a mais pequena dúvida. mas será sempre uma pequena democracia, uma panela de pressão pronta a explodir com o que julgamos sólido. uma democracia verdadeira é a que respeita o poder da maioria e os direitos dos que pouco ou nada têm – e em caso de escolha a que dá a mão aos descamisados e faz orelhas moucas ao ruído dos privilegiados. porque o estado, mesmo com um peso mais reduzido, é a cozinha da casa de todos. exactamente por isso não deveria esquecer que a panela de pressão está ao lume e apita mais do que os nossos ouvidos podem suportar».

remeto-a para belém sem esperar resposta. mas se escrevo para o palácio principal não me posso esquecer de são bento… o que dizer?

«exmo. sr. primeiro-ministro, dr. pedro passos coelho,

mexo em papéis, desvio móveis, deixo a água correr – quando penso muito alto disfarço o melhor que posso. acontece poucas vezes, é até bastante raro, mas nesses dias horrorizo-me com a hipótese de ser ouvido. não por temer que os pensamentos sejam impuros, apenas por sentir que a mim pertencem. se a si também acontece, se o volume do que pensa ameaça fugir das suas paredes, proteja-se o melhor que puder. fale mais alto do que o pensamento, bata com os pés, mude coisas de um lugar para outro. aprenda truques para continuar a pensar alto. o mais alto que conseguir».

já está. talvez me responda com algum pensamento audível, não sei – se o fizer contar-lhe-ei. preciso de um escritor.

«caro antónio lobo antunes,

não falamos há muito, eu sei. mas lembrei-me de si. estou revoltado, talvez partilhe isso comigo. milhares não têm um trabalho. muitos sentiram que a dignidade se perdeu, passaram a estar disponíveis para o que for preciso. já não vivem, sobrevivem. há gritos, talvez demasiado mudos, contra o sistema. alfinetam-se políticos, banqueiros e outras gentes feitas de dinheiro e poder. e os artistas, ou a maioria deles, são o exemplo de que talvez tenhamos batido no fundo – tirando um ou outro preocupam-se com o seu ego. nada fazem para pensar sobre o que nos tornámos; de copos em copos, de especulação em especulação são a vanguarda do que é mais reaccionário. nunca a cultura esteve tão pouco comprometida com o progresso. deles não rezará a história. e é pena».

falo de arte e chego a deus. valerá a pena escrever a policarpo? ouvir-me-á sobre o bem e o mal. devo tentar?

«exmo. cardeal patriarca,

vejo-me a correr sozinho numa cidade deserta, talvez seja madrugada e a maioria durma ainda. no silêncio da minha respiração ultrapasso esquinas, repenso equações, filhos e cenários com e sem futuro. há uma música. e um movimento interior, uma dança de palavras conhecidas e por conhecer. outra vez o bem e o mal, assunto nunca arrumado, a nossa essência. o mistério do mal, o indizível horror. ouvimo-lo vezes sem conta, um disparate. o que realmente não tem resposta, o verdadeiro mistério é o bem em todas as suas roupas – o amor, a felicidade, o milagre de acreditar, o sacrifício pelos outros, o sorriso sem condições. o mistério nunca esteve no inferno e nas vísceras, o mistério está nos que mantêm as suas lágrimas puras quando o rio que os banha e o ar que respiram é poluído e habitado por anjos negros. acredite, sem medo».

deus e a sua ausência presente. penso também em paradoxos, escrevo ao meu amigo daniel sampaio.

«querido daniel,

os nossos filhos são incapazes de compreender os jogos de infância dos pais ou avós – construir brinquedos, transformar molas em pistas de fórmula 1, cavalgar no velho oeste com cowboys de plástico, jogar à bola na rua sem perigos ou ameaças. não compreendem que a imaginação pode ser virtuosa e mais interessante do que as brincadeiras prontas a servir numa televisão, igual a qualquer refeição de fast-food. e, no entanto, de que nos serviu tanto estímulo se fomos a geração que mais falhou? será a forma como brincamos/imaginamos assim tão determinante? não, certamente que não. somos a prova viva do paradoxo».

vive-se disso, não é? de paradoxos, contradições, sinais. escrevo a josé hermano saraiva, despeço-me da sua amizade com as perguntas de sempre.

«professor…,

sempre as mesmas perguntas para a mesma ausência de respostas. falámos disto na última entrevista – de iluminados que arriscam entre um copo de megalomania e outro de verdade incerta; mas o certo é que os nossos filhos e os deles regressarão às obsessões do princípio dos tempos. o que somos? e por que a vida parece desenhada para nos colocar à prova? talvez estejamos numa escola onde, num quadro tão antigo como o ser humano, estão gravadas as mesmas palavras, as mesmas dúvidas, os mesmos medos. a chave para entrar no jogo. este que jogamos e de que já sabe mais do que nós aqui. o que temos de fazer para ganhar quando a última casa é a da nossa própria morte? e aí chegados seremos chamados ao director de turma ou clamaremos sem voz por uma vela que seja? quantos pontos teremos de descontar por cada tentativa de encontrar o sentido do tabuleiro? voltaremos a encontrar-nos, estou certo… e por aqui teremos saudades».

enviei-as neste quase agosto. através de si.