Finalmente, BCE?…

Tenho sido bastante crítico da actuação e da postura do Banco Central Europeu (BCE) perante a crise que a Zona Euro enfrenta.

 a autoridade monetária europeia tem-se mantido firmemente ancorada e restringida ao seu mandato de garantir a estabilidade de preços (definida como uma inflação não superior a 2%), não tendo agido como devia para garantir a estabilização financeira, quer dos estados que formam a zona euro, quer ao nível do próprio sistema financeiro. em particular, estando impedido pelos seus estatutos de intervir nos leilões de dívida pública no mercado primário (como acontece com o fed, o banco de inglaterra ou o banco do japão, por exemplo), o bce nunca actuou como lender of last resort (credor de última instância) informal no mercado secundário (de dívida já existente) – o que os bancos centrais acima referidos já fazem em caso de necessidade (e que os mercados sabem que acontece e confiam – levando a que, na prática, esses bancos centrais ou tenham de intervir muito limitadamente ou nem sequer o tenham que fazer de todo).

aliás, mesmo quando (desde 2010) comprou dívida pública no mercado secundário (dos países sob fogo dos mercados), o bce fê-lo de forma intermitente, e sempre com uma postura reticente e contrariada… o mesmo sucedeu quando anunciou, em dezembro de 2011, duas operações de refinanciamento com um prazo de 36 meses e um juro médio ajustado à principal taxa directora (a taxa refi), que inundaram de liquidez o sector bancário europeu e criaram condições para que os bancos pudessem voltar a comprar dívida pública (a long term refinancing operation, ltro), a falta de entusiasmo continuou a ser marcante. como se não o quisesse fazer mas pronto, lá tinha que ser…

e a cereja no topo do bolo veio em maio último, quando o bce anunciou – aí com uma postura bastante mais afirmativa e, digamos, satisfeita, do que anteriormente – que não tinha planos para implementar quaisquer medidas destinadas a contrariar a volatilidade nos mercados financeiros; que não iria intervir até pelo menos julho e que iria rever a eficácia de medidas passadas. numa altura em que as tensões no mercado de dívida pública afectavam já largamente os juros cobrados a espanha e itália, imagine-se!…

foi, por isso, inesperado (pelo menos para mim) – mas muito positivo – ouvir, na semana passada, mario draghi, referir, numa conferência em londres, sem papas na língua e de forma convincente, que «o bce vai fazer o que for necessário para preservar a zona euro», tendo ainda juntado um inédito «acreditem em mim, será suficiente». sem surpresa, os juros da dívida pública de espanha e itália (os casos mais problemáticos na zona euro) caíram a pique e as bolsas europeias dispararam.

falta, agora, saber como se traduzirão, na prática, a mudança de postura de draghi e estas suas declarações. porque se o primeiro efeito psicológico foi positivo (até pela surpresa, depois do histórico conhecido), é preciso mostrar algum ‘serviço’ para convencer os mercados de que o bce estará realmente ‘lá’ quando for preciso. que serviço? mais importante do que qualquer nova descida das taxas de juro, e como já tantas vezes tenho defendido no passado, actuar como lender of last resort no mercado secundário de dívida pública, o que – como aos outros bancos centrais – lhe é permitido pelos seus estatutos.

ao dizer o que disse na semana passada, draghi colocou a fasquia demasiado alta. num point of no return, digo eu – e ainda bem. porque, mesmo conhecendo a oposição do banco central alemão (o bundesbank) a uma intervenção do género da acima referida, corro o risco de considerar que draghi não teria dito o que disse se não tivesse a certeza de o poder fazer. a forma é irrelevante*, desde que seja convincente e restabeleça, enfim, a confiança dos investidores na zona euro, essencial para que a normalidade financeira e económica possa regressar. algo que só um banco central, com o seu poder de fogo ilimitado (a ‘grande bazuca’ que é poder emitir moeda sempre que necessário) pode garantir. terá o bce finalmente acordado?… quero acreditar que sim, mesmo que com enorme atraso. mas enfim, lá diz o povo, mais vale tarde do que nunca…

nota: este texto foi escrito com informação disponível até quarta-feira, 1 de agosto de 2012.

(*) por exemplo, anunciando um tecto nos spreads dos juros dos títulos de dívida pública de países na mira dos mercados (como espanha e itália) face às taxas alemãs (o que garantiria um limite mínimo para o preço desses títulos, que têm uma relação inversa com os juros). um tecto suficientemente equilibrado que não tornasse insustentável o financiamento desses países nos mercados mas que, ao mesmo tempo, funcionasse como incentivo (e forma de pressão) para que os governos em questão reduzissem o respectivo endividamento (cumprindo as metas orçamentais previstas) e realizassem as reformas com que se comprometeram (não estaríamos, pois, em presença da chamada “monetarização dos défices públicos”). um tecto entre 250 e 300 pontos base, acima do qual o bce interviria automaticamente, por exemplo, cumpriria ambas as funções. e, como é do poder de fogo infinito de um banco central que estamos a falar (a emissão de moeda), é muito provável que, paradoxalmente, esse mesmo poder de fogo fosse usado muito limitadamente ou nem o fosse de todo (não se colocando, portanto, sequer, a questão das indesejáveis e temidas pressões inflacionistas).

uma decisão deste género, anunciada pelo bce e sem a intervenção (pelo menos visível…) dos decisores políticos teria, ainda, a vantagem de – como deve ser, no caso de um banco central – não danificar a sua independência e credibilidade.

*economista, ex-secretário de estado do tesouro e das finanças