‘O melhor que fiz foi sair da F1’

Herdeiro de hotéis, formou-se em Gestão Hoteleira para seguir o negócio da família, mas a paixão pelas corridas trocou-lhe as voltas e aos 27 anos tornou-se o 4.º português na F1. Hoje com 36, o piloto da Honda continua a acelerar. Nas pistas e nos negócios.

segunda-feira em lisboa, no dia seguinte em portimão, quarta-feira se calhar em casa, no porto, os três dias seguintes pelo mónaco, no domingo uma nova possibilidade de regresso ao domicílio, e, ao virar para a semana seguinte, mais uma viagem, agora para a bélgica. quase sem tempo para assentar os pés a um só chão, a semana de tiago monteiro voa entre as pistas de competição automóvel e as pistas de aeroportos.

saiu da fórmula 1 (f1) , criou uma equipa, abriu restaurantes e agora corre no campeonato do mundo de carros de turismo. está mais activo como piloto ou como empresário?

a minha actividade principal ainda é a de piloto e espero que assim se mantenha por muitos anos. acho até que muita gente não sabe que tenho uma equipa e que faço outras coisas, simplesmente porque, ao contrário do que acontece com as corridas, em que faz parte dar a cara, nas outras actividades isso não é tão importante e eu não procuro essa exposição.

acompanha o negócio dos restaurantes ou limita-se a investir?

é complicado porque passo metade do ano a viajar e a outra metade em portugal, mas sempre dividido entre lisboa e o porto, onde vivo. claro que isso não me permite fazer um seguimento presencial diário, mas recebo informações todos os dias e faço uma ou duas reuniões mensais para me inteirar de tudo. não dá para ser doutra forma porque não é essa a minha profissão.

mas estudou gestão hoteleira.por que optou por essa área?

porque a minha família está ligada à hotelaria e eu, desde miúdo, sempre vivi o negócio de perto. passava as férias nos nossos hotéis [yellow hotels] e depois, por coincidência, acabei por criar uma amizade muito grande com o nosso director-geral na altura. ele era o meu herói, entre aspas. via-o trabalhar no hotel e depois muitas vezes ia andar com ele de moto e jet ski. ele era tão activo que pensei: este é um emprego fantástico, trabalha-se muito mas depois também há a possibilidade de se fazer o que se gosta. quando era miúdo isso era um sonho.

teve a primeira moto com apenas oito anos. já se imaginava em corridas?

sabia que gostava de desporto motorizado, mas não via nisso uma profissão. como precisava de ter uma e a minha vontade era estar ligado ao negócio da família – não só porque fazia sentido mas porque gostava mesmo – optei por gestão hoteleira. fiz o curso na suíça porque é lá que estão as melhores escolas de hotelaria do mundo.

em que escola estudou?

fui para glion [institute of higher education] por ser mais focada na gestão. tudo bem que é uma gestão especializada em hotelaria, mas 50% dos meus colegas, ou mais, nem sequer estão a trabalhar nessa área porque a formação que recebemos é suficientemente abrangente, embora com aspectos específicos. por exemplo, andei um mês na cozinha e um mês a servir às mesas porque na hotelaria é preciso conhecer tudo.

descobriu aí algum talento para cozinheiro?

não. nunca fui um bom cozinheiro, mas tenho as minhas bases. aliás, mais do que cozinhar convém saber como é que o cozinheiro tem de gerir a cozinha. essa parte é importantíssima e implica controlar os custos, utilizar bem os ingredientes e gerir bem o espaço para se poder mandar fazer. não posso pedir ao cozinheiro algo impossível.

voltando às corridas, ainda é dono de recordes na f1, como o de estreante a concluir o maior número de provas (16). isso deixa-o vaidoso?

vaidoso não, orgulhoso sim, porque um recorde significa que nunca ninguém antes conseguiu chegar lá. cada pessoa na sua área gosta de ser bom no que faz e deixar uma marca. eu posso dizer que deixei algumas marcas e por isso orgulho-me. mas não é algo que use no dia-a-dia para me gabar. se as pessoas sabem, tudo bem, mas não vou ser eu a falar nisso. é importante, faz parte da minha carreira e está no meu currículo, mas não é um feito que use como argumento.

não houve uma ponta de frustração com a saída?

foi uma decisão calculada, mas claro que ao mesmo tempo foi frustrante porque não queria sair. nenhum piloto que consiga chegar à f1 quer isso. mas depois de dois anos a competir em condições muito difíceis, chegar ali, assinar um contrato e saber que se vai andar sempre, no melhor dos casos, em 15.º, 16.º lugar… saber que só se está a correr para ganhar experiência, tentar dar nas vistas e procurar dar o salto para uma equipa melhor não é menos difícil. mas é assim que 90% dos pilotos da f1 começam. apesar disso, o meu objectivo era sair para uma equipa melhor, não sair por sair.

chegou a negociar essa continuidade na f1?

sim, estive mesmo muito perto de assinar por outra equipa, as pessoas não imaginam o quanto.

qual era a equipa?

a toro rosso, que tem uma forte ligação à red bull, e que na altura estava a evoluir. prometeram algumas coisas, a mim e ao meu manager, a nível de performance da equipa, que poderiam não se confirmar. desconfiámos e decidimos recusar o contrato. seis meses depois o que nos tinham prometido aconteceu mas naquela altura, com as informações que tínhamos, era uma decisão demasiado arriscada e o meu medo era fazer mais um ano em condições que poderiam ser más.

mas quando saiu planeava voltar. não seria mais complicado fazê-lo depois de sair?

regressar não é mais complicado do que entrar porque temos mais contactos. a minha ideia era continuar, ou nesse ano ou no ano seguinte, noutras equipas, sabendo sempre que havia o risco de isso não acontecer porque todos os anos passa-se muita coisa. só há um ou dois lugares disponíveis e há 50 pilotos de todo o mundo a tentar entrar. mas hoje, seis anos depois da saída, vejo que foi a minha melhor decisão.

porquê?

basta ver que os dois pilotos que lá ficaram acabaram com a carreira deles. porque uma coisa é fazer um ou dois anos em condições difíceis e conseguir dar a volta, outra é passar cinco ou seis anos sempre lá atrás. mesmo no meio, já ninguém vê esses pilotos como vencedores. perdem a credibilidade porque as pessoas acabam por se esquecer de tudo o que fizeram para chegar à f1. no meu caso saí, voltei a ganhar corridas e isso manteve-me noutro patamar. quem se tinha esquecido de que o tiago monteiro podia ganhar corridas, pensou: ‘ele afinal é bom e ganha corridas, só não estava no carro certo’.

aí já estava a entrar nos 30 anos. a idade não seria um obstáculo?

um bocadinho, mas no meu caso sempre foi diferente porque toda a gente sabia – e foi muito importante comunicar isso às equipas –, que comecei muito tarde. por isso, quando cheguei à f1 aos 26, 27 anos, era sabido que só tinha sete anos de experiência de desporto automóvel. claro que isso também me trazia vantagens quando comparado com alguns pilotos de 20 anos. pela experiência, pela responsabilidade, pela autoconfiança, por conhecer melhor os meus limites e saber lidar melhor com o mundo à volta, nomeadamente com a imprensa. porque um miúdo de 20 anos, mesmo que seja muito bom em pista, chega à f1 e não está pronto para a outra parte que é quase tão importante quanto ser rápido e saber guiar. muitos deixam-se ir abaixo porque não aguentam a pressão e no final é um talento desperdiçado.

não é suposto haver um acompanhamento de integração?

o acompanhamento existe, mas não deixa de ser difícil para um miúdo – e agora são cada vez mais novos – viver sob toda a pressão da f1. eu próprio se calhar não estaria pronto para entrar na f1 tão novo, e acho que a maior parte dos que entram não estão. agora, alguns estão bem acompanhados e conseguem concentrar-se na corrida, mas há muitos que chegam lá e saem da f1. não porque não tinham o talento, mas simplesmente porque aquela pressão extra fora da pista deu-lhes cabo da performance. ser piloto hoje em dia depende 80% da cabeça. se em cima do talento tiver confiança no que está a fazer e no que pode fazer, é um piloto que pode ser campeão do mundo. mas o mesmo piloto com o mesmo talento e uma cabeça mais frágil ou não tão preparada pode acabar aí. isso é que é frustrante.

viveu muitos momentos de fragilidade?

claro, também faz parte da aprendizagem perceber que temos de nos esconder da opinião pública para fazer o nosso trabalho. há uma coisa que o jacques villeneuve, acabado de ser campeão do mundo, me disse – ainda estava eu a começar em competição e longe de imaginar que chegaria à f1 – e que não me esqueço: ‘nenhum jornalista, por muita boa vontade que tenha, vai conseguir explicar o que estás a fazer, mas depois todos, mesmo os que nunca foram a uma prova, vão falar como se soubessem tudo. vai ser uma frustração muito grande e pode afectar-te psicologicamente, por isso se um dia chegares à f1 deixa de ler os jornais e concentra-te no teu trabalho’.

seguiu o conselho?

inicialmente não, porque é normal termos sempre aquela curiosidade de saber do que se está a falar. e na altura eram primeiras páginas de jornais, televisão, tanta coisa que era impossível não ver. mas realmente houve ali uma altura em que me lembrei dessa dica e tive de fazer isso. caso contrário, seria uma frustração horrível, porque nós estamos a fazer um trabalho incrível, duro, e a arriscar a nossa vida todos os dias porque temos de arriscar mais do que os outros que estão na frente porque eles têm os melhores carros. depois ninguém dá valor a isso. as pessoas não entendem como é que um piloto que sempre ganhou corridas chega à f1 e está em 15.º e 16.º todos os fins-de-semana. foi muito difícil explicar às pessoas as diferenças que há entre os carros e a diferença de investimento que há entre cada marca. vivi momentos muito difíceis com essa pressão, com a falta de aceitação das pessoas.

sentiu-se injustiçado?

não, o grande público quer ver resultados, isso é normal. agora também cabe a nós, pilotos, tentar explicar o que é possível e o que não é. na f1 há carros com investimentos de 50 e 60 milhões de euros a competir com carros que têm investimentos de 500 milhões de euros. deveriam ser categorias diferentes, mas não são. acho que as pessoas deviam lembrar-se que quem chega à f1 já faz parte dos melhores do mundo, as grandes diferenças estão entre os carros. se me perguntarem se isso é justo, respondo que não, não é. é a f1. l

paula.cardoso@sol.pt