Um país de telenovela (II)

Depois de Gabriela – já lá vão 33 anos –, e com excepção de uma novela com o fabuloso Paulo Autran, que na altura eu desejava contratar para um filme, e que, por isso, segui com regularidade, não me lembro de ter visto uma única telenovela, brasileira ou portuguesa, do princípio ao fim.

mesmo se é ingrato, e por vezes negativo, ver actores que admiro a fazer papéis inconsistentes, com diálogos absurdos e uma iluminação que não permite dramatizar as situações (a luz tem de ser feita de modo a que a cena possa ser filmada de três ângulos ao mesmo tempo), só olho para as novelas portuguesas para ver o trabalho de alguns actores. é impossível levar a sério aquelas histórias, copiadas das novelas sul-americanas, que nos descrevem uma sociedade que não existe (a profusão das casas burguesas com criadas fardadas, por exemplo) e escamoteiam os problemas reais.

mas então por que razão as telenovelas são campeãs de audiências? por três razões. primeiro: a ficção é, em todo o mundo, o prato forte do prime-time; e como os operadores portugueses não têm dinheiro para mais (uma novela custa cerca de dez vezes menos que um filme e as ‘gravações’ rendem, por dia, dez vezes mais do que as filmagens), nem há apoios à produção audiovisual, as televisões são obrigadas a recorrer (como num país do 3.º mundo com que nos parecemos cada vez mais) ao produto mais barato da gama possível de ficções audiovisuais (séries, telefilmes, sitcoms). a novela é, assim, o equivalente à açorda dos alentejanos ou à pizza dos napolitanos: um recurso dos pobres.

a segunda razão é que, apesar de serem deliberadamente desfocadas da realidade, as novelas imitam o velho esquema do folhetim (dos jornais, no século xix, passando pela rádio no século passado); exploram os conflitos, os sentimentos e as emoções que são os ingredientes da ficção, desde a bíblia até hoje, passando por shakespeare e pelo grande romance do século xix: a vingança, o sacrifício, o crime, a chantagem, as relações difíceis entre pais e filhos, a inveja de classe, a decadência, o arrependimento, a traição, etc..

mas a terceira razão, que seria injusto não enaltecer, é que são bem-feitas. à falta de uma indústria de cinema, existe hoje uma sólida indústria de telenovelas, organizada exactamente como o cinema americano na ‘era dos estúdios’, com uma produção em cadeia, rigorosamente planificada e com excelentes profissionais. e, graças à falta de continuidade de trabalho no cinema e no teatro, as novelas recorrem, geralmente, aos melhores actores. é deles que vamos falar para a semana.

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