quem vive para a escrita vive aprisionado num labirinto com várias divisões: o livro que queremos escrever mas que ainda não conseguimos começar, o livro que já começámos mas que ainda não está agarrado, o livro que fica na gaveta em pousio até chegar o momento de ser revisto, o livro em provas de revisão e depois cá fora, nas prateleiras das livrarias, em forma de gente, filho criado e entregue ao mundo, quando passa a pertencer aos leitores.
e as páginas semanais e mensais na imprensa, as crónicas que nos pedem aqui e ali, as ficções que nos assaltam escritas a partir de um momento vivido ou presenciado, cheias de ideias e de palavras, cheias de sonhos e de lágrimas, cheias de nós. e nós sem nos conseguirmos libertar do labirinto, vagueando de sala em sala, num círculo tão imperfeito quanto perpétuo, no qual nos perdemos e nos encontramos diariamente para voltarmos a perder-nos.
a música e a solidão são as grandes companhias de um escritor. mas a música não ajuda a pensar, apenas acorda as memórias e facilita os sonhos, sobretudo os mais vagos e os menos viáveis. por isso escolho com critério as músicas que oiço enquanto escrevo. não consigo escrever sobre tristeza se estiver a ouvir marvin gaye, nem sobre a inveja ao som de michael jackson. e quando o assunto é mesmo sério, prefiro o silêncio acima de todas as músicas.
mas eis que este verão, quase por milagre, conseguir descansar. viajei, visitei amigos, recebi amigos em casa, escrevi pouco e reli alguns clássicos, num exercício de poupança de recursos cognitivos que me pôs o sono em dia e o apetite em ordem. dei por mim a pensar em assuntos prosaicos do quotidiano, como o que me vai apetecer jantar, ou que biquíni levo hoje para a praia.
desci à terra e mergulhei três semanas numa onda mansa de ligeireza de pensamento, sem questões existenciais nem raciocínios profundos, daqueles que passam por exames de consciência e que acreditamos poderem mudar a nossa vida. em vez disso, troquei a introspecção por mergulhos à golfinho e mandei o meu coração de férias.
descobri que é muito mais fácil ser feliz assim, como são os animais que vivem o momento sem pensar no que representa esse momento na teia complexa e relativa que é o tempo. e deixei de ter medo de tempos mortos porque aprendi a saborear esses momentos em que não somos obrigados a fazer absolutamente nada. aprendi a dormir até tarde, mesmo quando já não tenho sono, e a dormir a sesta na praia. comi todos os gelados que o meu desejo exigiu, bebi todos os copos de vinho branco que me souberam a mil, dancei sempre que me apeteceu e ri-me de tudo e de nada. fiquei mais leve por dentro e mais fácil para mim mesma. numa palavra, descompliquei-me.
o livro continua na gaveta, a vontade de o ir visitar, de conversar com ele, de lhe cortar parágrafos inúteis e adjectivos repetidos é nula. afinal, o livro pode esperar. a vida é que não!