Pais boa onda

Nódoas negras de um lado, dores de travar os movimentos do outro, e, ao virar do primeiro dia, o corpo já só encontrava forças para processar uma ideia. «Nem me mexia. Estava tão partida que pensei logo: surf nunca mais».

hoje, meio ano depois de aguentar o sofrimento das marcas físicas, agravado por uma velha e assumida inércia desportiva – «ia ao ginásio de vez em quando» –, mónica sousa alçada continua a desafiar as próprias metas.

«não me passava pela cabeça iniciar-me numa actividade radical aos 44 anos, e muito menos meter-me nas ondas. agora faço aulas de surf uma vez por semana».

mais do que um súbito fervor desportivo, ou uma inesperada mudança de opinião, o entusiasmo actual de mónica revela a mesma origem do sacrifício inicial: o instinto maternal. «comecei nisto por causa da minha filha, a mercedes, que tinha vontade de experimentar mas não queria fazê-lo sozinha. depois quando acordei toda dorida e pensei desistir, o facto de ela continuar a insistir acabou por funcionar como um estímulo para voltarmos».

programa de família

no início só com a filha, mercedes, de dez anos, e a partir da aula seguinte também com o filho simão, de 13 – «ainda que ele ao princípio estivesse um bocado na dúvida: ‘ah, ir com a mãezinha e não sei quê’» –, depressa o surf se transformou num programa familiar.

«em vez de nos levantarmos tarde porque ficamos na cama a engonhar, estamos aqui a aproveitar o sábado». a manhã ainda se encaminha para as 8 horas, mas, em carcavelos, primeiro ponto de reportagem do sol, os sousa alçada já preparam movimentos para mais uma aula da always surf school.

«não precisam que guarde nada? então bora lá». a voz de comando pertence ao instrutor andré palma e assinala a saída do parque de estacionamento, até 15 minutos antes convertido em balneário a céu-aberto.

«o fato aquece muito e não dá jeito nenhum conduzir equipada», explica a técnica superior de formação, antes de uma série de contorcionismos que, entre tolhas de praia, a bagageira do carro e o fato-de-banho, lhe veste o corpo para a entrada no mar.

«viu? já me levanto um bocado, mas havia de ver nas primeiras aulas:_fartei-me de cair». a conquista do take off – capacidade de manter o equilíbrio sobre uma prancha –, chama à conversa rui brígido, 51 anos de vida e alguns meses de ondas.

«quando me perguntavam se ia para o surf, respondia que ia para o banho», brinca o comercial, de volta à temporada de quedas e descobertas. «fazia bicicleta e por isso julgava que estava em forma, mas vim para aqui e apanhei uma decepção».

mais duros na queda

contra a maré que parece embalar uma nova vaga de surfistas tardios – iniciados no mar por influência dos miúdos –, é rui quem alicia o filho de 15 anos para o surf. «no outro dia viemos juntos. ele até gostou só não estou certo de que esteja muito entusiasmado».

a idade pode bem fazer a diferença nestas voltas, observa o instrutor e treinador enrique lenzano, apanhado já na praia do guincho, o nosso segundo ponto de reportagem. há três anos e meio à frente da more than surfing school e instrutor há uma década, kike – diminutivo que lhe condensa as apresentações – garante que na hora de medir resistências o espírito pesa mais do que os anos. «os mais velhos podem até encontrar maiores dificuldades, mas são mais lutadores do que os miúdos, que facilmente deixam tudo para trás».

o esforço de comparação parece ajustado à medida da história de rui, mas também ajuda a enquadrar a experiência de joão_mogas. «a minha filha pediu-me para fazer aulas de surf e comecei por acompanhá-la. depois, um dia, uma amiga pôs-me pensar: ‘porque é que tu, enquanto estás aí à espera, não pedes ao professor para experimentar?’».

mais de dois verões vividos desde a aventura de estreia, joão, hoje com 52 anos, tornou-se um surfista tão apaixonado que até mudou de casa para estar mais próximo da praia. de belas, no concelho de sintra, para o estoril, no concelho de cascais, o caminho marítimo cumpriu-se já sem o empurrão da companheira de ondas original, hoje com 20 anos.

«a minha filha agora faz surf esporadicamente enquanto eu faço sempre que posso, três a quatro vezes por semana», conta o engenheiro civil, ainda maravilhado com os benefícios extra-desportivos das marés. «é muito giro como momento de comunhão, e de vez em quando lá vem o desafio: ‘pai, vamos surfar’. nunca pensei no surf como desporto de família».

à boleia do efeito-surpresa, pólo de atracção de novos públicos, as escolas desenvolvem uma nova oportunidade de negócio.

além de descontos à medida da extensão dos agregados familiares, válidos a partir dos três elementos, o mercado diversifica a oferta – das dezenas às centenas de euros – para satisfazer o amadurecimento da procura.

12 pontos na cabeça e muita calma

«estamos a organizar a primeira surf trip para adultos», revela o responsável da more than surfing, com o calendário apontado para a segunda semana de setembro e as primeiras confirmações já agregadas à lista de inscrições.

«de certeza que sim. quero mesmo ir», empolga-se rita stock, de 42 anos, desde o ano passado habituada a reforçar os apetrechos de praia de toda a família com fatos e pranchas.

mãe de um trio de surfistas dos seis aos 16 anos, a empresária, que também divide as ondas com o marido, resume a devoção do clã à descoberta de uma fonte de benefícios. para a saúde _física – «este é o desporto mais completo que já fiz» – e para a saúde familiar: «chamamos a isto tempo de qualidade».

revezada entre as lições com o instrutor e as chamadas incursões de free surf, a empresária só abrandou o ritmo quando levou 12 pontos na cabeça. «era a última onda do dia. ao sair, a prancha embicou na areia, voltou para trás e eu levei com a quilha na cabeça».

os pormenores do acidente, na praia de carcavelos, desfiam-se a partir de um profundo ‘ah’ de suspiro mas, garante rita, há muito que silenciaram os ímpetos de desistência. o mérito, nota a surfista, está na própria força do desporto, pouco compatível com espíritos sobressaltados.

«acho que o surf exige calma. não só para encontrar a onda certa, mas também para saber a altura em que temos de nos levantar».

joão_mogas acrescenta «persistência e confiança» aos predicados e, de memória fixada nos últimos dois anos de manobras, assume perder a adjectivação: «vamo-nos superando e as pequenas conquistas que fazemos são indescritíveis».

a possibilidade permanente de evolução, num «desporto que se vai revelando cada vez mais exigente», também fidelizou isabel barata às ondas. aos 46 anos e com quatro de surf, a osteopata confirma o denominador comum às turmas mais velhas de andré palma e enrique lenzano: os filhos.

«não tenho dúvida de que ficamos a conhecer-nos melhor porque o surf favorece essa proximidade», aponta, peremptória em identificar outra virtude entre marés. «vencer temores. o surf tem essa coisa, não é? as ondas metem medo».

pior do que isso, o mar consegue descontrolar os nervos da também mãe surfista carla santos. «é horrível. tenho de me separar do meu filho porque se estivermos juntos na água é um stresse».

ondas anti-stresse

incapaz de resistir aos gritos de aviso maternal, a engenheira de 39 anos aceitou facilmente a recomendação do instrutor: uns dias lança-se ela às ondas, noutros aventura-se o filho de sete anos.

no final, repete-se a diferentes vozes e tempos, entre os areais de carcavelos e do guincho, não há stresse nem mal-estar que resistam. «a pessoa sai da água com um estado de espírito…. isto é mesmo terapêutico», resume mónica alçada, tal como joão mogas indiferente aos embaraços das ondas.

«com a minha idade não me vou meter a fazer aéreos», despacha o engenheiro, distanciando-se contudo de qualquer entrave à realização. «como me disse um amigo, o melhor surfista não é aquele que consegue fazer as manobras mais complicadas mas sim aquele que retira maior prazer do surf».

paula.cardoso@sol.pt