qualquer cidadão iletrado, qualquer criança que saiba fazer contas, teria chegado à conclusão que as políticas de austeridade (aumento brutal de impostos, corte de salários, logo, perda de poder de compra) iriam traduzir-se em mais falências e despedimentos, logo, em mais desemprego, logo, em menos receitas fiscais e mais encargos sociais para o estado. como é pouco provável que seja incompetência do ministro, da troika e de quem manda hoje na europa, há que procurar outra explicação: e se o aumento do défice e o incumprimento das metas orçamentais dos países mais fracos servissem afinal os interesses de quem nos tem que vender a ideia de que temos que continuar a vender os anéis e privatizar tudo o que houver para privatizar, para pagar a dívida? edp, tap, águas de portugal, ctt, rtp, cp, e, depois, à medida que o défice se recusar a baixar, os cemitérios, as prisões, todos os serviços públicos que estiverem à mão?
há dias, tive que ir ao ica (instituto do cinema e do audiovisual). era um dia muito quente. pedi uma garrafinha de água; foi-me explicado que não havia verba. a embaixada de portugal em israel promoveu uma restrospectiva de alguns dos meus filmes nas cinematecas de telavive, jerusalém e haifa. um dos filmes não pôde ir; a cópia não pôde ser visionada, porque o ica não tem cabimento de verba para contratar um projecionista. os apoios ao cinema pararam, os concursos não abriram. para não falar da cinemateca, do estado calamitoso do teatro e das outras artes. e, sobretudo, da ameaça de privatização da rtp, um instrumento fundamental em qualquer política cultural e da lusofonia. das duas, uma. ou francisco josé viegas, um escritor de mérito, um brilhante colunista e um homem de cultura sabia o que ia encontrar, e que lhe iam pedir para ser o secretário de estado de um gabinete sem dinheiro nem poder, arriscando-se a ficar como o coveiro da cultura, ou o convenceram de que tudo isto era inevitável e para nosso bem.
mas o governo tem dinheiro (e não deve ser pouco) para contratar um consultor como o dr. antónio borges, ex-membro do goldman sachs, que preside às privatizações. ora, das duas, uma: se o goldman sachs está, de facto, a «fazer o trabalho de deus», como disse o seu presidente, lloyd blankfein, quem é que está então a fazer o trabalho do diabo?
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