‘A pulsão poética mantém-se’

Mesmo no exercício das suas funções de Presidente, Jorge Carlos Fonseca continua fiel às suas paixões: o Direito Penal e a poesia.

esteve em são paulo, onde participou numa conferência sobre ciências criminais. a sua exposição chamou-se ‘antecipação da tutela penal e princípio do estado de direito. a punibilidade dos actos preparatórios em cabo verde’. trocado por miúdos, o que quer dizer?
o que quis explicar é que há uma tendência hoje, sobretudo por causa de fenómenos como o terrorismo e os tráficos, a se antecipar a aplicação da pena. fiz uma comunicação crítica dessa perspectiva do estado de direito. não se justifica punir comportamentos que estão muito distantes da consumação.

como é que um presidente tem tempo para esta actividade extra?
são quase 30 anos de ligação ao crime enquanto fenómeno de estudo do direito penal. até ser eleito era essa a minha actividade profissional. e escrevia e colaborava em revistas estrangeiras, também era director de uma revista… para esta conferência convidaram-me logo depois de tomar posse. aproveitei uma matéria que já tenho trabalhado muitos anos.

gostou deste seu regresso ao direito?
fi-lo com gosto, mas terei cada vez menos tempo. revisitei ambientes que me são familiares. pude encontrar vários professores que já conhecia e conhecer outros. este seminário é uma coisa rara, tem um número de participantes que não é normal em cabo verde ou na europa. e além disso houve uma cereja no topo do bolo. o instituto brasileiro de ciências criminais deliberou atribuir-me o título de sócio emérito. é um privilégio e uma honra: sou o terceiro sócio emérito. e a minha ideia é ver se consigo fazer a ponte deste instituto, que tem prestígio, meios, muita experiência de investigação e edição, com instituições universitárias cabo-verdianas.

o presidente escreveu livros de poesia. agora escreve para a gaveta?
continuo ainda, nos espaços intermitentes, à noite, de madrugada, nas viagens, a ler poesia. e aproveito as viagens para fazer uma escapadela às livrarias. e tenho outro escape: na conferência que fiz no brasil, após uma hora a falar sobre penas e crime, li um poema de jorge barbosa escrito em 1935, ‘você, brasil’, muito ritmado e rico, uma espécie de amor quase obsessivo pelo brasil e em que mostra que há afinidades muito fortes entre brasil e cabo verde. mas vou escrevendo. ponho muita poesia na página pessoal do facebook, e até creio que tenho sido publicado em antologias e colectivas. mas o exercício da função condiciona um pouco. e já antes também, como professor e investigador em direito, há uma linguagem muito lógica e formal e a poesia implica mais liberdade, mais criatividade e outro tipo de tempo. mas a pulsão poética mantém-se presente. e de alguma forma traduzo isso no exercício concreto da minha magistratura presidencial.

como?
na forma como contacto as pessoas, como faço os discursos. por exemplo, no discurso que fiz no dia da independência, terminei com um poema de mário fonseca, meu irmão. dou sempre um toque pessoal nas intervenções.

qual a última descoberta poética que o marcou?
as minhas últimas leituras foram releituras. há três semanas estive de férias e estive três dias na brava. aí reli o livro do desassossego, de pessoa. e quando fui à cimeira do rio dediquei-me a conhecer melhor a poesia brasileira: drummond de andrade, manuel bandeira, joão cabral de melo neto… mas os meus apetites em matéria poética têm mais que ver com uma certa poesia de influência surrealista. releio sempre breton, cesariny, alexandre o’neill.

cesar.avo@sol.pt