Jovens com o futuro nas mãos

Num mercado de trabalho cada vez mais saturado de doutores e engenheiros, os velhos ofícios como a costura e a carpintaria renovam-se pelas mãos de jovens licenciados. Unidos na luta contra o desemprego.

calhou apanhar a porta entreaberta. de olhar esgueirado para a fresta, num rasgo incontido de curiosidade, rita cortes valentes arregaçou os instintos manuais. «quando reparei que do outro lado havia madeiras, pus-me logo a pensar: que giro, se quiser fazer um protótipo já sei…».

sem mais ideias, para além da descoberta de um espaço de provisão à medida dos projectos de uma licenciatura em design do equipamento, rita acabou por seguir em frente. «nunca imaginei que agora pudesse dar nisto», conta, desde março às voltas com o bê-á-bá da carpintaria.

ofício contra desemprego

«vim cá parar outra vez porque tinha feito um workshop de restauro e queria aplicar os meus conhecimentos numa ou duas peças que me faltava recuperar. foi aí que me lembrei de voltar».

aqui, à entrada de um rés-do-chão sem sinais exteriores de vida profissional, as mãos do senhor casimiro – na apresentação da sua pupila – desviam o rumo desta designer de 27 anos de um destino de desemprego para o ofício de carpinteira.

«desde que comecei a restaurar e a criar peças, só estive um mês sem trabalho e isso foi logo no início. agora tenho sempre imenso para fazer».

pode ser o restyling de uma cómoda ou a construção de um banco, é sempre o verbo fazer, acrescenta a colega de curso e cozinheira liliana escalhão, que pontua a diferença no enquadramento desta história. «há cada vez mais pessoas qualificadas para os trabalhos teóricos mas estamos a deixar de ter profissionais que sabem fazer. é preciso reduzir este desequilíbrio».

a necessidade de corrigir as distorções de mão-de-obra – já traduzida em ofertas salariais mais atractivas para operários do que para engenheiros e arquitectos (ver caixa) – ajuda a perceber a viragem dos jovens licenciados para actividades manuais.

sem mãos a medir

«este espaço reflecte isso mesmo», anuncia liliana, numa espécie de visita-guiada ao conceito que inaugurou o primeiro andar, restaurante e bar gerido em parceria com duas amigas. «recuperámos todos os móveis do espaço à mão e fomos nós que pintámos as paredes», recorda a cozinheira de 29 anos, já refeita de algumas contrariedades nos planos de remodelação. «corri a baixa [de lisboa] à procura de uma folha de madeira para forrar uma mesa e não encontrei porque as pessoas deixaram de usar. mas tal como eu precisei, acredito que outros também vão precisar tendo em conta que a crise permite essa transformação: traz novas formas de estar, de pensar e de agir».

das palavras trocadas no primeiro andar – onde a «afluência gigante» até obriga a rejeitar reservas – às encomendas recebidas na carpintaria, percorre-se a mesma empolgação.

«já considerei arranjar alguém por umas horas para me ajudar porque tenho vários trabalhos a acontecer ao mesmo tempo», admite rita, firme em manter a produção a bom ritmo. «não posso recusar trabalhos nem quero que as pessoas percam o entusiasmo entre o primeiro contacto e a entrega».

em sentido inverso, a contenção nas marcações de agenda exibe-se como um traço de distinção na cozinha de liliana. «só aceitamos uma reserva de grupo por noite porque queremos que os clientes se sintam em casa», explica, fiel ao conceito do negócio. «estávamos com receio de abrir em agosto por ser um período de férias, mas só no fim-de-semana que passou tivemos de recusar seis jantares».

a corrida aos pratos assinados por esta designer de formação – iniciada entre convívios de amigos à mesa de casa e mais tarde alargada a receitas publicadas online – acabou por antecipar a reforma do canudo da faculdade de belas artes. «a partir do momento em que comecei a receber o feedback de desconhecidos, muitas vezes para dizerem apenas que viram o blogue e gostaram do aspecto dos pratos, comecei a questionar o meu caminho».

a mudança de direcção, ressalva liliana, cumpre-se sem sombras de arrependimentos académicos, sentimento também partilhado por dina júlio, a doutora que se segue. «claro que foi decepcionante perceber que não tinha forma de aplicar o que aprendi no meu curso, mas na vida é preciso seguir em frente», aponta esta filha de estofador, com um canudo em ciência política, na especialização de relações internacionais.

desencaminhamento vocacional

«na minha altura nem sequer havia o encaminhamento que agora é feito nas escolas», recua, de memórias pregadas no acompanhamento profissional dos seus tempos de liceu. «lembro-me de ir ao ministério da educação expor as minhas dúvidas, e de se limitarem a colocar dois ou três dossiês à minha frente com uma série de informações sobre cursos e universidades».

do desacompanhamento à escolha de uma licenciatura estrangulada pela falta de saídas profissionais, dina, hoje com 34 anos, recorda apenas três meses de experiência na área. é por isso sem reservas que se entrega ao negócio da família: «não me atrapalha nada pôr as mãos na massa porque nada disso apaga o que aprendi no curso. a diferença é que agora tenho a oportunidade de trabalhar em actividades que sempre encarei como hobby».

a experiência, desenvolvida entre incontornáveis tarefas de organização administrativa da oficina, já rotinou dina para a técnica manual de encadear molas de suspensão em sofás. «têm de ficar todas ao mesmo nível», explica, com a descrição alongada nos detalhes do processo. «usam-se cordas de dois e três cabos para fortalecer e é preciso dar nós específicos». a dinâmica manual – repetida sob supervisão do pai, anselmo júlio – reforça diariamente a aposta de dina num ofício ferido de morte. «neste país criou-se a ideia de que odos têm de ser doutores e engenheiros, e o resultado está à vista: há pouca gente a exercer a profissão de estofador».

pelo contrário, cristina garrido, do atelier paraíso – oficina lisboeta dedicada ao ensino da costura –, nota um aumento na procura dos workshops especializados na arte da confecção. o fenómeno – que a empresária atribui sobretudo à necessidade de aliviar o stresse e à vontade de produzir a própria roupa – apanha a moldava natasha lopotenco no início de um sonho.

sob a pressão do superior

licenciada em direito, com especialização no ramo administrativo e alfandegário, a aprendiz de costureira troca sem hesitações o destino no meio judicial pelas linhas do pronto-a-vestir. neta de uma modelista e dona de uma colecção de seis máquinas de coser, natasha, de 26 anos, revê no percurso académico um caminho de orientações familiares. «desde muito nova que gosto de fazer as minhas roupas, mas a ideia de um curso superior sempre fez parte da minha educação».

a pressão do canudo – antes garante de uma carreira de oportunidades e de uma vida de desafogo – também ajuda a perceber as reticências de sofia ferreira. aos 25 anos, esta técnica de qualidade ambiental, desde a infância sugestionada para a área da saúde, assume em pleno a entrega ao circuito da estética. «trabalho como maquilhadora profissional há três anos e não tenho dúvidas de que estou melhor assim do que se tivesse continuado na minha área». a certeza, alimentada pelo encerramento de uma série de laboratórios – habitat natural da sua formação académica – reforça-se nas respostas do consumo.

além de manter uma clientela fiel nas caldas da rainha, a cidade de todos os dias, não olha a geografias na hora de arregaçar as mangas e deitar as mãos aos pincéis, pós e cremes de embelezamento.

«percebi que tinha mercado, resolvi investir em formações e acho que o retorno compensa bastante. já cheguei mesmo a ter situações em que passei o trabalho para uma colega por não ter hipótese de o fazer».

o tom de motivação – em ruptura com a tónica derrotista cada vez mais indissociável da juventude licenciada – repete-se na experiência de faz-tudo de josé maria robertson, ‘caçado’ para este artigo em jeito de espécime em vias de extinção.

«não admira. os homens são especialistas em arranjar problemas. nós tratamos das soluções». a diferentes vozes, dina, liliana e rita ensaiam assim a explicação para a saga que foi encontrar – e já fora do tempo da fotografia de grupo – um exemplo masculino de conversão ao manual.

sem vergonha nem preconceitos

a excepção chega do balcão do bar cinco lounge, na preparação de cocktails, estende-se às mesas do espaço, continua nas limpezas de balde e esfregona, e, sem reservas de entrega, resume a polivalência de josé, formado em gestão de marketing.

«não considero que ter uma licenciatura e trabalhar num bar seja demeritório. demeritório para mim é não procurar trabalho e eu tive a sorte de encontrar um ofício de que gosto».

a atitude descomplexada – que no caso de josé, de 26 anos, já foi premiada com o cargo de chefe de bar e gerente – pode ser a saída para o desemprego?_as respostas chegam a diferentes versões, mas unem as vozes deste artigo numa espécie de manifesto de grupo.

«o regresso a um lado mais prático do trabalho segue uma lógica de busca de novas oportunidades», defende liliana, numa partilha de ideias a outro tempo desenvolvida por dina. «acho que se está a perder a vergonha e o preconceito em relação aos ofícios». mais do que isso, acrescenta a experiência de rita, estão-se a ganhar conhecimentos. «via no senhor casimiro um carpinteiro. só depois percebi que faz cascos de sofá, coisa a que na altura nem sequer sabia dar um nome e muito menos imaginar que pudesse ser uma actividade». agora, além de acumular créditos de carpinteira, a auto-intitulada designer maker já molda o futuro ao próximo ofício: de cascalheira.

paula.cardoso@sol.pt