Nota sobre a Televisão do Estado

Para algumas pessoas inspiradas pelo liberalismo clássico, a televisão não se deveria encontrar, nas condições actuais, dentro do leque de funções que correspondem ao Estado.

Sendo assim, segundo a mesma perspectiva, a televisão do Estado não deveria existir. Para esta linha de pensamento, a ausência de monopólios e a livre concorrência são condições que tenderiam a levar a que o pluralismo de opiniões esteja presente na comunicação social. Ainda na mesma perspectiva, a televisão do Estado, pelo menos em teoria, poderia dar mais destaque a “quem está” no poder, em detrimento de “quem quer estar”. Nesse sentido, não seria necessariamente um fator tendente a estimular a desejável alternância pacífica no poder (como sabemos, uma medida prática da existência de Democracia, como notou K. Popper).

Outras formas de pensar existem, contudo. Para outros sectores filosóficos/políticos, defensores de um Estado maior e mais interventivo, a eventual interferência do “poder económico” sobre a comunicação social é vista com reserva. Nesta outra perspectiva, a entrega total da comunicação social a entidades privadas é vista negativamente. Para esta visão, seria importante o Estado garantir a existência de pelo menos uma estação independente do “poder económico” – o que implicaria, no caso da televisão, a existência de uma estação do Estado.

As circunstâncias históricas concretas de Portugal levaram à actual Constituição da República Portuguesa (CRP), a qual, pelo seu lado, determina que “O Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão” (artigo 38º, 5). Podemos discutir se deve ou não existir um “Serviço público de televisão”, mas essa troca de ideias poderá ser estéril, face à presente impossibilidade de alterar a CRP neste ponto. Sectores importantes da opinião pública revêm-se no modelo defendido pela CRP – e esse aspecto é muito relevante. De uma forma geral, devemos ter toda a tolerância para os pontos de vista dos outros – até porque, como norma, não é raro que os outros tenham pelo menos alguma razão.

A despesa com a televisão do Estado tem sido muito grande – seja sob a forma de taxa ou de dotações do orçamento do Estado (OE). Face à actual crise financeira, importaria diminuir essa despesa, que representa um fardo, entre outros, para os consumidores e para os contribuintes – muitas pessoas poderão concordar com este ponto, independentemente da sua filosofia. A privatização da televisão do Estado poderia levar ao fim dos atuais encargos com a mesma. Contudo, a alternância democrática que se verifica em Portugal leva a que seja discutível que a melhor solução, atentas as condições existentes, seja a privatização total.

A televisão do Estado é actualmente dominada por 2 canais em acesso livre – um dos quais tem uma audiência e orçamento muito superiores aos do outro. A solução para o canal mais importante deverá passar por uma gestão privada – entendida como solução para retirar do âmbito do Estado as respectivas despesas (a opção por privatização ou por concessão é relativamente indiferente, no cenário defendido no presente texto). Não faria qualquer sentido uma gestão privada da actual televisão estatal, mantendo-se qualquer tipo de taxa ou dotação orçamental.

Podemos, contudo, abrir uma exceção a este principio, no caso de as condições do mercado assim o exigirem – poderia ser definido um período transitório, por exemplo de 4 anos, durante o qual as dotações (taxa/OE) diminuiriam em 1/4 por ano, enquanto que o tempo de publicidade aumentaria, de forma a que no final do período em questão as dotações do Estado tivessem acabado, enquanto que o regime que regula o tempo de publicidade seria idêntico ao da concorrência.

Já o canal menor, atentos os constrangimentos políticos e constitucionais, poderia ser mantido com gestão estatal. Bases para o pequeno canal estatal: uma programação sem concursos, sem novelas, sem futebol, etc.; um orçamento muito limitado e sem possibilidade de crescer ou de ser ultrapassado; limitação de publicidade; informação e programação institucional, tal como transmissão de discursos do Presidente da República e de sessões parlamentares. Mais do que apenas um canal para a Cultura (a qual se encontra muito abundantemente representada, e muito bem, na televisão por cabo e na internet), deveria tratar-se de um canal para a Cidadania.

Seria interessante conseguir algum tipo de interacção com o sistema de Justiça, uma vez que os Tribunais são, na verdade, órgãos de soberania. Antes de mais, vivemos num Estado de Direito. Grande parte dos cidadãos, contudo, tem dificuldades em preparar um simples requerimento. Seria importante transmitir informação sobre o nosso enquadramento jurídico-constitucional – tal como já defendi anteriormente, essa informação poderia ser particularmente importante no caso dos imigrantes. Também as Universidades poderiam encontrar aqui um papel – na disseminação de conhecimentos, desde os autores clássicos, até à informática e à eletrónica práticas, passando pelas línguas estrangeiras. Sobretudo no caso de se tratar de uma emissão a ser disponibilizada internacionalmente, também o sector turístico deveria merecer uma atenção especial.

Sob o ponto de vista político, esta proposta: 1) resolve os problemas de constitucionalidade; 2) resolve muitas críticas colocadas por parte do espectro político da esquerda; 3) reduz acentuadamente os encargos do Estado com a televisão; 4) ao determinar a extinção, imediata ou dentro de poucos anos, da taxa (contribuição) audiovisual, pode ser popular num momento de grandes dificuldades por parte de muitos cidadãos; 5) diminui a probabilidade de, em sede de alternância democrática, qualquer modelo agora adoptado ser alterado num prazo relativamente curto.

Em síntese, atentas as condições concretas actuais, a solução para a televisão do Estado deverá passar pela manutenção de um pequeno canal com gestão estatal, com um cariz de canal para a Cidadania, e pela gestão privada do maior canal da actual televisão estatal, cessando o financiamento estatal a esse canal, sendo de admitir um eventual período de transição. Apenas uma mudança de ponto de vista da esquerda democrática poderá vir a permitir, a longo prazo, uma mudança da CRP que leve ao fim da televisão do Estado. Esse dia, contudo, ainda não chegou.