A defesa do miserabilismo

As comemorações do 5 de Outubro em anos anteriores tiveram tanta adesão como, por exemplo, os festejos do 1 de Dezembro. Tirando os representantes da Nação, além de uns tantos fervorosos republicanos, pouco mais se via na Praça do Município em Lisboa.

por razões mal esclarecidas, o presidente da câmara de lisboa, com a anuência do presidente da república, decidiu mudar o local dos festejos, levando-os para a jóia da coroa de antónio costa: o pátio da galé. dessa forma tornavam a coisa ainda mais íntima e afastavam-na de olhares reprovadores, atendendo ao clima que se vive em portugal. além de ter sido um disparate enorme, a mudança só contribuiu para acicatar os ânimos da população. numa altura em que as pessoas se sentem abandonadas pelos governantes, era de todo aconselhável que não alterassem o cenário. é óbvio que a ocasião seria aproveitada por muita gente que quereria ir demonstrar o seu descontentamento. até se admite que os serviços secretos tenham declarado que o local era perigoso. mas era um risco que teria de ser corrido.

independentemente da mudança de lugar e do caricato episódio da bandeira ter sido hasteada ao contrário – nunca vi tantas almas preocupadas com um símbolo que quase fizeram desaparecer dos locais públicos… –, o que é lamentável é o aproveitamento folclórico que algumas televisões fizeram do acontecimento. uma mulher desesperada teve mais tempo de antena do que os discursos dos presidentes de câmara e da república.

o que é intrigante é que não percebam que estão a brincar com o fogo. dar tempo de antena, como deram, a uma mulher desesperada que quase apelava a uma insurreição contra os homens de fato e gravata, acessórios que bem dispenso, chamando-lhes de gatunos para cima é não ter noção de nada. se, por acaso, lá estivessem nas comemorações os patrões dessas televisões, as mesmas dariam assim tanta cobertura ao acontecimento? seria engraçado vê-los passar à frente da dita senhora e a serem filmados…

os tempos de crise não podem nem devem ser aproveitados para se defender o miserabilismo. que se mostrem as desigualdades e que se noticiem as más governações. que se tente tornar a sociedade mais justa. mas puxar tudo para a desgraça é que me parece inaceitável. as televisões têm um peso decisivo no rumo dos acontecimentos e a privatização de um canal público não pode justificar tudo…l

vitor.rainho@sol.pt