manuel marín foi o número dois da hierarquia eleita do estado espanhol, enquanto presidente do congresso (2004-2008). na comissão europeia, que chegou a liderar interinamente em 1999, foi vice-presidente e foi responsável ao longo de 14 anos por pastas comunitárias como a educação, emprego, assuntos sociais e relações externas. é considerado o pai do erasmus, lançado nos anos 80 em resposta a uma das recorrentes crises do processo de integração europeia. o sucesso do programa de intercâmbio académico, que envolveu mais de dois milhões de estudantes ao longo de mais de duas décadas, motivou a distinção do responsável espanhol, no passado dia de 12, com um doutoramento honoris causa pelo iscte-iul, em lisboa.
o sol aproveitou a ocasião para entrevistar o político e académico sobre três crises: a do programa erasmus, que enfrenta actualmente um corte drástico das contribuições financeiras dos estados-membros da união europeia, a da própria ue e a de espanha, onde marín identifica um risco real de desagregação. como prometido, publicamos aqui a versão integral da conversa cuja versão concisa é hoje publicada na edição imprensa do semanário.
parte 1: erasmus e europa
o programa erasmus, de que foi «pai», enfrenta neste momento uma grave crise de financiamento que pode conduzir ao seu fim. que acção espera por parte dos estados europeus?
espero que essa crise seja resolvida, porque seria dramático colocar em risco a existência de um programa que é uma das melhores coisas que a europa fez, sobretudo pelo que significa ao nível de mudança de mentalidades, de oportunidades, de cooperação entre as universidades, e porque já criou uma geração, várias gerações aliás, de estudantes erasmus que podem comprovar a materialização do programa no intercâmbio, no reconhecimento de diplomas, na criação de créditos académicos comuns, no colocar em marcha do espaço de ensino comum europeu, o chamado espaço bolonha. tudo isto contribui para a compreensão mútua, para o entender como são os outros, e isto tem de se manter.
é também um instrumento de formação de uma identidade europeia.
absolutamente, sim. se perguntar à opinião pública sobre um elemento de unidade europeia, sobre um programa que pense ser positivo, ela dirá erasmus. porque há muitos milhões de europeus e muitas famílias que têm um filho ou algum conhecido que está fora de casa. «onde está a tua filha? está a fazer um erasmus noutro país». isto tornou-se um diálogo comum entre muitas famílias europeias.
teme que os benefícios de uma experiência académica internacional voltem a ficar reservados a uma elite?
espero que isso não aconteça. porque de facto se se reduzir muito o orçamento, quem vai estudar no estrangeiro são os filhos das famílias ricas. a bolsa atribuída aos estudantes em erasmus não é determinante, mas o financiamento do programa é determinante para manter o sistema a funcionar, para manter esta rede que garanta a equivalência dos estudos realizados. estamos a falar de um ano, dois anos académicos, o que equivale a falar de muito dinheiro para as famílias, para quem o erasmus é uma garantia de confiança. enviamos os nossos filhos para o estrangeiro para estudar, pagamos esse esforço muito significativo, mas temos a garantia de que quando regressarem os seus estudos serão validados automaticamente. isto antes não era possível.
e o que responde aos que dizem que o erasmus é um programa de turismo universitário ou uma espécie de botellón europeu?
que não é verdade. é absurdo. também não gosto de ver jovens consumirem álcool em excesso, e isso é um problema que existe, mas é um problema geral, da juventude, que não está vinculado à ideia de ser um bolseiro erasmus.
o programa erasmus surgiu como uma resposta a um momento de crise do projecto de integração europeia. voltamos a atravessar uma crise semelhante. que resposta é necessária agora?
basicamente, é necessário agora conferir credibilidade às decisões económicas que estão a ser tomadas. o que não está a acontecer. vivemos um momento muito crítico, porque nunca antes a união europeia ou alguns países da ue tinha conhecido uma crise financeira, económica e social como a actual. e então, há que reconhecer que grande parte dos cidadãos estão desesperados, e isso é que se tem de tentar corrigir rapidamente.
esse problema de credibilidade é um problema de legitimidade democrática?
não, não creio. distingo as duas coisas. não sei como é em portugal, mas em espanha tivemos um debate muito importante em torno do movimento de contestação de 15 de março (15m), em que se dizia que com este problema de credibilidade se colocava também um problema de legitimidade democrática, e que a democracia teria de ser substituída por outra coisa. eu não acho que seja assim. a democracia continua a ser o melhor dos sistemas que existem. eu acredito na democracia representativa, e para mim a democracia permite, se houver alguém de quem eu não gosto, que eu possa utilizar o meu voto e colocar lá outra pessoa. as regras da democracia podem ser melhoradas? sim, mas não sou partidário da substituição da democracia por movimentos populares. há uma falta de credibilidade, mas isso não me leva a dizer que a a democracia já não funciona. qual seria a alternativa? os movimentos populares? quais? o de evita perón? a revolução cultural de mao? todos os movimentos populares têm direito a expressar-se, mas eu creio no estado de direito. se os políticos agora são muito maus, há que meter lá outros.
é partidário dessa ideia de que os políticos agora são muito maus?
são bastante maus.
isso não é culpa dos cidadãos que os elegem?
não. é culpa dos partidos políticos. os partidos, infelizmente, transformaram-se num corpo endogâmico em que as cúpulas dos partidos políticos reproduzem-se a si mesmas, desligando-se da sociedade. isso é verdade.
os partidos políticos transformaram-se organizações não democráticas?
não. uma coisa é funcionarem mal e terem de funcionar melhor, mas outra coisa é dizer que são organizações não democráticas. na minha opinião, com uma excessiva rapidez se dá o passo de dizer «isto não funciona, ergo não é democrático». a democracia não tem culpa de que haja uns quatro deputados na assembleia que não são, vá, geniais, mas isso não significa que a democracia tenha de ser abolida.
conversamos no dia em que a união europeia recebe o prémio nobel da paz. qual foi a sua reacção ao anúncio?
fiquei muito feliz, porque de facto a ue é a principal entidade do mundo em termos de cooperação, ajuda humanitária, ajuda alimentar…
mas muitos cidadãos criticaram e ridicularizaram esta escolha. para eles, a ue é merkel, é a austeridade, é o fracasso do euro. isto não é sintoma de uma crise de comunicação entre a ue e os seus cidadãos?
para muitos cidadãos portugueses, espanhóis ou italianos, a ue poderá ser merkel e a austeridade, mas para um sueco, um finlandês ou holandês será outra coisa completamente diferente. sim, esse debate existe na europa, mas não nos pode levar ao absurdo de se desvalorizar um prémio que se dá à ue por algo que ela faz bem. mas também não podemos esperar que será o nobel a fazer com que um tubarão de wall street deixe de especular.
mas há ou não um problema de comunicação, um afastamento entre a ue e os seus cidadãos?
é difícil dizer isso. andámos aí com aquele discurso de que havia um défice democrático, e que todos os problemas se resolveriam com a resolução do défice democrático. eleger o parlamento europeu? fizemos isso. nomear um presidente da comissão europeia? fizemos isso. nomear um senhor pesc? fizemos isso. presidente do conselho europeu? fizemos isso e agora temos o senhor van rompuy. e afinal de contas, não havia um problema de défice democrático. levantaram-se todas as cortinas. agora vamos à página web da comissão europeia e o que há é um excesso de informação que é muito difícil de digerir. portanto, penso que agora o problema é o contrário. entender o que é uma europa com 27 estados-membros muito diferentes, com diferentes culturas e diferentes línguas, é um processo que leva muito tempo.
deixo-lhe a seguinte reflexão: aqui em lisboa, alguém se sente preocupado com os problemas do mar negro? provavelmente não. da mesma forma, pergunte a um romeno se está muito preocupado com os problemas dos lapões da carélia finlandesa. o que quero dizer com isto? que não se pode pedir à europa um sentimento, uma emoção colectiva em termos de uma cidadania europeia. oxalá um dia isso ocorra, mas ainda estamos muito longe disso. podemos criar uma europa dos cidadãos em programas concretos como o erasmus, mas não um sentimento de uma emoção colectiva. sou muito sincero, quando vejo a bandeira azul ou oiço o hino de beethoven, emociono-me, mas porque dediquei
uma parte da minha vida a trabalhar para a europa. mas enganamos-nos quando pensamos que chegará o dia em que vamos ouvir o hino europeu e colocar a mão sobre o peito.
não é realista?
não é realista. não podemos pedir à europa coisas que a europa não nos pode dar. a europa é um processo de integração conduzido por estados soberanos que decidiram partilhar, num espaço comum, as suas soberanias. é um processo histórico que é um êxito, mas que vai precisar de muito tempo.
e há algum risco de tudo ruir? a união europeia pode acabar?
não, porque isso seria regressar aos demónios do passado.
mas os demónios do passado estão adormecidos pela promessa de prosperidade. e agora essa promessa desapareceu. não teme que esses demónios despertem?
os demónios do passado estão de facto a despertar. veja-se a última visita de merkel a atenas. não é normal receber alemães com suásticas. é um passo atrás, há que reconhecê-lo. durante a minha experiência de 18 anos de trabalho para instituições comunitárias, eu nunca vi este tipo de reacções. nunca. havia tensões entre países, mas nunca desta forma. preocupa-me muito que haja uns sete países onde a extrema-direita racista e xenófoba possa chegar ao governo. e não duvidem que esta extrema-direita racista e xenófoba está na origem de muitos dos problemas europeus. isso preocupa-me muito. se observarmos os últimos desenvolvimentos em frança, na holanda, finlândia, bélgica, áustria, suécia… por agora, a extrema-direita é muito limitada em portugal e em espanha. mas tenhamos atenção. isso preocupa-me muito, que o sentimento de defesa se manifeste em posições reacionárias e xenófobas.
a resolução da actual crise passa por uma nova reforma institucional da ue?
sim.
rasga-se o tratado de lisboa? não funciona?
é óbvio que não funciona. foi um compromisso para evitar o choque da constituição europeia, mas é óbvio que não funciona.
que alternativa defende então?
defendo um regresso ao que estava proposto na constituição [tratado para o estabelecimento de uma constituição europeia, 2004], aos elementos básicos que morreram no referendo francês e no referendo holandês. note-se que nesses referendos não se discutiu europa.
discutiu-se política interna.
discutiu-se política interna. discutiu-se o caso de pym fortuyn e de teo van gogh, casos de perda da identidade holandesa frente à emigração massiva. e no caso de frança, foi a disputa sobre quem seria o presidente, a disputa entre fabius, sarkozy, villepin. esse é o grande problema de fazer referendos sobre a europa. é que não se discute europa, discute-se sempre questões internas e tudo sai distorcido. para mim, quando se diz que o referendo é a expressão máxima da democracia, eu lembro sempre que o referendo é também o instrumento mais utilizado pelos ditadores. franco era um especialista em referendos. o referendo é um instrumento que tanto pode ser utilizado por um democrata como por um ditador. mais uma vez, há uma confusão entre o instrumento e a democracia.
é a favor da eleição directa do presidente da comissão europeia?
sim. isso seria muito bom.
parte 2: a crise do estado espanhol
vamos a espanha. abandonou a política quando era a segunda figura eleita do estado espanhol, na presidência do congresso. não tenciona regressar um dia?
não. agora estou mais interessado no caminho da sabedoria. o meu objectivo é ser um sábio. a minha paixão é as meditações de marco aurélio. quero ser um perfeito estóico.
mas não está preocupado com a possibilidade de desagregação de espanha?
estou. há uma situação difícil neste momento, seria absurdo negá-la. e vai exigir uma grande capacidade de diálogo político para superá-la, claro que sim.
a catalunha vai separar-se de espanha?
vamos ver. espanha vai iniciar agora um processo eleitoral muito importante. dia 21 de outubro, há eleições na galiza e no país basco. são dois casos distintos, sendo que no caso basco está presente o elemento independentista. no mês seguinte, teremos eleições na catalunha. eu sou partidário de se esperar para ver o que dizem as eleições. porque este sentimento [independentista] existe em catalunha, é verdade. mas esse sentimento tem de ser decantado, e na hora de votar, nem todos interpretarão da mesma maneira esse sentimento de independência, e nem todos interpretarão as reivindicações face ao resto de espanha da mesma maneira. dentro da catalunha, há pessoas que estão muito preocupadas com o que poderá significar a separação, porque há muitos catalães, que não só no âmbito económico, como político e cultural não estão de acordo com uma catalunha independente fora da europa e fora do euro.
é o mesmo dilema com que se deparam os bascos?
sim. em 2006, há seis anos, o governo basco submeteu às cortes o chamado plano ibarretxe, que pretendia a criação de um estado livre associado, mas no final de contas não se fez nada porque a separação seria muito complicada. eu sou partidário de uma estrutura federal para espanha. mas federalismo a sério.
qual seria o seu modelo federal? o alemão?
gosto muito do modelo alemão, mas teríamos de desenvolvê-lo em função das nossas próprias características históricas.
um modelo espanhol, portanto.
um modelo espanhol, um modelo adequado à história de espanha, mas um modelo de estrutura definitivamente federal. creio que esta seria a solução, realçando que o modelo federal tem dois elementos centrais, de acordo com a lógica da decisão do tribunal constitucional alemão de 1987. o primeiro princípio é o de que os direitos públicos universais – saúde, segurança, educação, as pensões – são direitos dos cidadãos, porque o sistema federal incorpora o elemento de citizenship anglo-saxónico. são direitos dos cidadãos, não há direitos dos territórios. o segundo princípio é o da lealdade à federação, que quando há um conflito entre um território e a federação, predomina sempre o interesse geral. isto é federalismo a sério. a partir da aceitação deste sistema, penso que podemos procurar fórmulas que agradem a todos, e que no caso concreto de espanha permitam constitucionalizar o direito próprio que tem a galiza, o país basco e a catalunha à sua língua própria, à sua cultura própria, porque de facto são uma realidade quotidiana.
isso seria uma solução para as tensões nacionalistas actuais? os movimentos independentistas seriam travados?
não. por definição, o principal adversário do independentista é precisamente o modelo federal, porque tal significa aceitar um grau de união. um independentista precisa sempre de três coisas, por definição: precisa de um inimigo, precisa de estar oprimido e precisa de ser vítima. isto é dos livros. quando alguém assume esta atitude, é impossível convencê-lo do que quer que seja, porque pensa sempre que está a ser enganado e oprimido. eu sou espanhol, mas o que quero ser a partir do momento em que entro na ue é ser um cidadão universal, cosmopolita, aberto. porque a ue é a superação das nacionalidades, porque aceitámos transferir a nossa soberania para uma entidade supranacional que se chama ue. e porque aceitámos algo que se esquece sempre: que o sistema jurídico europeu, o direito comunitário, é prioritário em relação ao direito nacional e se aplica directamente. por isso, quando os independentistas dizem que são independentistas mas que querem ser europeus, isso é uma contradição in terminis que ainda não conseguiram resolver. porque dentro da europa temos que nos submeter a regras que cortam muitos conceitos de soberania.
há também uma crise de regime em espanha? a monarquia está em causa?
não.
não há espaço para o republicanismo em espanha neste momento?
não. mas espanha é um país garante todos os direitos. pode-se ser monárquico, republicano, anarquista, do atlético de madrid, do sporting de lisboa…
parte 3: o papel da europa num novo mundo multipolar
foi um dos primeiros líderes europeus a prever a ascensão do brasil. emerge hoje um mundo multipolar. que papel está reservado para a europa?
nesse aspecto estou muito preocupado, porque estamos a perder potencialidades enormes. à américa latina, a europa interessa cada vez menos. a maioria dos países latino-americanos olha hoje para o pacífico. estão muito mais interessados e são muito mais dependentes do que se passa na ásia do que na europa. este é um dos grandes erros que os europeus cometeram, porque aqui na europa ainda não se percebeu que o mundo já não é eurocêntrico. nas minhas conferências universitárias costumo utilizar umas fotografias muito interessantes do tempo em que andávamos na escola primária. numa sala de aula, um mapa ao fundo mostra a europa e o meridiano de greenwich no centro do mundo. mas esse mapa agora, e o que faço é fazer um pequeno truque de manipulação fotográfica, já não tem o meridiano de greenwich no centro. o centro do mundo é agora o meridiano 180º.
na ásia.
exacto. ora, se vemos o mundo com o centro em greenwich, vemos a europa ao centro, as américas à esquerda, a ásia à direita e áfrica ao sul. se o centro estiver no meridiano 180º, a europa torna-se totalmente periférica. e essa é a realidade de hoje. e os europeus ainda não perceberam que com a globalização e a queda do muro de berlim o mundo atravessou mudanças vertiginosas. absolutamente vertiginosas. e não soubemos adaptar-nos. no caso da américa latina e do brasil, eles podem hoje ensinar-nos como se sai de uma crise. hoje estão com crescimentos médios de 5%, os bancos nacionais são hoje capazes de adoptar políticas anticíclicas, estão a assinar acordos de livre comércio com a china, que consideram o principal mercado financeiro do século xxi, o que provavelmente é verdade…
portugal e espanha podem aproveitar o capital histórico que têm nessa região?
há que ser muito realista. nós temos influência na américa latina, mas não temos poder. pensar-se que portugal ou que espanha têm poder na américa é desconhecer os factos. nós temos é influência, e temos que utilizá-la.
é possível uma estratégia ibérica para a américa latina?
não, de maneira nenhuma. eu sou muito impopular em madrid quando explico que espanha tem uma estratégia muito boa com a américa latina, tal como portugal tem como a lusofonia, mas que os países da península ibérica não têm potencial político, económico ou financeiro para competir no mundo global. isso é óbvio. e o que temos de fazer em primeiro lugar é aceitar os nossos limites. é duro mas é assim. mas atenção, na parte cultural, criativa e linguística temos massa crítica. aí assim.
a sobrevivência de portugal e espanha neste novo mundo multipolar garante-se apenas no quadro da união europeia?
sim.
não enquanto estados sozinhos, espanha e portugal?
não. forget it! não temos capacidade.
quando os europeus absorverem essa imagem da europa na periferia, do reduzido peso relativo dos seus países no mundo, poderá finalmente aumentar o apoio ao processo de integração europeia?
inevitavelmente. senão, será o salve-se quem poder, e isso será dar um passo atrás na história.
parte 4: a crise e as suas lições para o futuro
como observa portugal neste momento?
a primeira vez que vim a portugal foi durante a revolução. foram uns anos fantásticos em que portugal foi uma referência para muitos, em que se sentia que havia oportunidades para todos. uma maravilha. nesses anos, em resultado do fim da ditadura, portugal e espanha foram confrontados com a ideia da modernidade, e que essa modernidade vinha inevitavelmente pela mão da europa. lembro-me das nossas primeira cimeiras, em que não havia uma ponte sobre o minho nem uma ponte sobre o guadiana. eram dois países de costas voltadas. tudo isso foi resolvido de maneira extraordinária. hoje passa-se de um país para outro por auto-estrada sem se dar conta e andamos todos a discutir o que o mourinho diz ou faz. foi um processo muito positivo. estes últimos 30 anos foram os mais estáveis que portugal e espanha, que a península ibérica conheceu do ponto de vista político, económico e social. fizemos muitas coisas boas. falava noutro dia com antónio vitorino e dizia-lhe que há que dar razão à alemanha e admitir que fizemos mal isto e aquilo. mas o balanço geral é o de um êxito colectivo. a geração que fez a revolução dos cravos em portugal e a geração que fez a transição democrática em espanha são duas gerações triunfadoras, que pegaram em dois países numa situação muito má e os deixaram numa situação melhor. essa é a verdade dos últimos 30 anos.
o problema é que nestes últimos cinco anos estamos a correr o risco de perder tudo o que foi feito. o que mais me preocupa é que em espanha e portugal se começa a quebrar aquilo que se chama de ascensão intergeracional. uma sociedade é dinâmica e evolui quando uma mãe e um pai em casa decidem fazer uma poupança para investir nos filhos, para que estes vivam melhor que os progenitores. estamos a chegar a um ponto em que isso já não é possível. os pais estão tristes porque vêem que, depois de todo um investimento, os seus filhos não vão atingir o seu nível social. e é mais duro para os filhos que vêem o esforço dos pais e também percebem que nunca irão lá chegar. quebrou-se a ascensão intergeracional como instrumento renovação de uma sociedade. isto é muito grave. deixa de haver esperança.
temos que nos acostumar a viver sem esperança?
não! se vivermos sem esperança, a democracia cai. temos sempre de ter uma referência para tentar consolidar o futuro do país e de uma sociedade. isso é o que me preocupa. tenho pensado muito no caso grego, onde professores e altos funcionários que conheci em bruxelas vêem hoje regressar a casa os seus três filhos com as suas três mulheres e filhos porque não têm nada. são hoje obrigados a viver juntos numa espécie de tribo. ainda não é o nosso caso, mas temos de resolver esta situação.
há ou não há soluções para a crise? quais?
os mecanismos da união bancária e fiscal têm de ser postos em marcha até ao final do ano para começar a haver liquidez no mercado. senão, vai ser muito difícil.
então tem esperança numa solução relativamente célere.
sim, creio que sim. se funcionar tudo correctamente. tem de entrar em vigor o pacto de estabilidade e tem de funcionar. e acredito que quando voltar a haver liquidez a economia volta a funcionar.
se revolvermos esta crise, que lição vamos retirar? viver com menos?
ter sentido do limite, gerir a economia como um bom pai de família, como dizia jacques delors. em espanha houve novo-riquismo. é preciso agora pensar muito mais, reflectir. temos de ser um país mais aborrecido mas mais organizado. assustam-me cada vez mais os políticos flexíveis e visionários.
é um homem que preza as instituições.
creio nas instituições. a todos os meus estudantes digo que têm de ler as memórias de jean monet e o futuro da democracia de norberto bobbio. jean monet: «os homens passam, as instituições permanecem». norberto bobbio: «os pactos políticos são por definição precários e conjunturais. o fundamental da democracia é as suas regras e as suas instituições». eu acredito nisso.
é presidente da fundação iberdrola, onde tem dedicado atenção ao estudo de novas soluções energéticas. é outro debate ligado ao futuro das sociedades. esse futuro está integralmente nas energias renováveis ou temos que continuar a depender dos combustíveis fósseis e do nuclear?
se fosse possível fazermos tudo com energias renováveis, esse seria o modelo. mas de momento não é possível prescindir da energia gerada pelos combustíveis fósseis e pelo nuclear. estou convencido que, no campo das energias renováveis e do combate às alterações climáticas, as soluções vão chegar a através da investigação científica, não da política. se conseguirmos investigar a captura do dióxido de carbono, se conseguirmos desenvolver os carros eléctricos, vamos dar dois passos de gigante. mas ao mesmo tempo, para conseguir dominar o planeta e regressar à sustentabilidade, teremos de voltar a valorizar as políticas públicas. isto não é uma contradição, e vou dar um exemplo. é necessário fazer uma grande campanha de educação e pedagogia, sobretudo nas grandes cidades. por exemplo, no meu país, a hipótese de alguém deixar o carro eléctrico a carregar num poste de abastecimento durante a noite seria metafisicamente impossível. alguém vandalizaria o poste, ou faria uma puxada ilegal. é preciso incutir respeito ao público. isso é fundamental.
o mesmo quando se fala de eficiência energética. quanto é que gastamos por mês ao deixar os electrodomésticos em stand-by? cinco a seis por cento da factura mensal. porque é que o telecomando é considerado um tamanho avanço cultural? quando era pequeno, levantava-me e apagava a televisão no botão. nunca parti o dedo nem precisei de um psiquiatra. com os contadores inteligentes, que são outra linha de investigação actual, teremos em casa um aparelho que nos avisa que deixámos um televisor em stand-by e que nos pede para o desligar. todos os lares estão a gastar 5, 6 ou 7% de energia a mais porque as pessoas recusam a regressar ao velho costume de desligar tudo. os contadores inteligentes vão ainda avisar-nos para fazermos uma máquina de roupa só a partir de determinada hora para aproveitarmos uma tarifa reduzida. e se a máquina leva três quilos de roupa então temos de esperar até termos três quilos de roupa para lavar. é portanto uma questão de tecnologia, mas sobretudo de educação e de disciplina familiar.
pedro.guerreiro@sol.pt