a orquestra geração nasceu em 2007, com o objectivo de levar música clássica a jovens de classes sociais desfavorecidas. o programa inspirou-se no modelo venezuelano el sistema e hoje já tem cerca de mil alunos em portugal. o documentário homónimo, de filipa reis e joão miller guerra, estreou no cinema city classic alvalade e mostra como tudo funciona.
a primeira nota a reter sobre a orquestra geração é simples, mas não necessariamente imediata. por isso, sempre que fala sobre o projecto que coordena, o professor wagner diniz está treinado para sublinhar várias vezes que o objectivo da orquestra geração «não é criar músicos, mas sim, através da música, tentar reconstruir um tecido social que está um pouco estragado».
a explicação carece de ser lembrada tantas vezes por causa do modelo que inspirou a iniciativa nacional. criado na venezuela em 1975, o el sistema é um programa de educação musical infanto-juvenil, vocacionado para as classes sociais mais baixas, e que já formou milhares de instrumentistas ao logo dos anos. entre eles, figura o conhecido maestro gustavo dudamel, actualmente director artístico da orquestra sinfónica de los angeles e da orquestra simón bolivar da venezuela e que, em 2009, foi considerado pela revista time uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.
foi com este fortíssimo cartão-de-visita internacional que a orquestra geração arrancou em portugal, há cinco anos, mas ele também cria alguns equívocos sobre a missão do projecto. «claro que, em cerca de mil alunos [o número actual de estudantes do programa nacional], há uns quantos que estão em escolas profissionais e que encontraram na música um objectivo. mas nós somos um projecto de intervenção social. para nós não é só importante conquistar os miúdos. queremos conquistar a comunidade e os pais», comenta wagner.
a primeira vez que ouviu falar do el sistema, wagner diniz estudava na suíça. como tinha vários colegas naturais da venezuela, um dia foi convidado para assistir a um concerto de uma das orquestras venezuelanas (criadas pelo el sistema) e guardou aquele momento especial na cabeça. anos mais tarde, em conversa com o amigo jorge miranda – que na altura dirigia o departamento de educação da câmara da amadora e procurava um programa de acção social adequado às escolas locais –, wagner diniz recuperou a experiência que viveu na suíça.
em 2007, na condição, na altura, de presidente do conselho executivo do conservatório nacional de música, montou o projecto em parceria com a autarquia da amadora e com o apoio do ministério da educação e da fundação gulbenkian. a primeira escola a formar a orquestra geração foi a miguel torga da amadora, onde começaram com 15 alunos. «e terminámos o ano lectivo com 115 crianças», recorda o professor de música. em 2008, o projecto cresceu, com mais duas escolas (uma em vialonga e mais outra na amadora) a aderirem ao programa, e assim continuou gradualmente até 2012. «actualmente somos 12 escolas na área metropolitana de lisboa, mais uma em coimbra e três em trás-os-montes», menciona.
sete horas de música semanais
pertencer à orquestra geração obriga a que, todas as semanas, os alunos tenham que estudar sete horas de música extra-curriculares, divididas entre cinco horas de trabalho conjunto, uma de técnica e outra de coro e formação musical. «quando eles começam, a nossa preocupação inicial é colocarmos, primeiro, as crianças em comunicação umas com as outras. elas precisam de se habituar a estarem juntas. depois, como têm de estar muito atentas àquilo que estão a tocar, começam a desenvolver a capacidade de concentração», diz o coordenador do projecto (que funciona associado ao conservatório nacional), frisando que é aqui que se notam as grandes mudanças.
«o absentismo reduziu imenso e já há inclusive uma escola, na amadora, em que os miúdos que fazem parte da orquestra geração tiveram quase todos nível 5. isto é incrível, principalmente quando pensamos que, na sua grande maioria, estes miúdos vêm de famílias monoparentais, com situações financeiras e sociais muito complicadas», salienta, referindo como o caso mais extremo a que assistiu o de um adolescente «que dormia com uma faca na cama porque tinha medo que o irmão o matasse durante a noite».
sodade, de cesária évora
com 37 anos de experiência na venezuela, wagner diniz acredita que este modelo de ensino atrai os alunos porque, primeiro, eles têm logo um instrumento disponível para aprenderem a tocar e, segundo, o repertório é bastante popular e adaptado às realidades locais de cada escola. «os miúdos gostam de ouvir bom ritmo e boa melodia e as primeiras canções que aprendem aqui são arranjos de cordas simples, onde ainda nem precisam de usar os dedos. a pouco e pouco vão começando a tocar obras mais complexas, mas que também reflectem a diversidade cultural do bairro onde vivem», esclarece, referindo que há escolas onde 80% dos alunos são cabo-verdianos. «introduzimos mornas e coladeras no repertório. a primeira vez que tocámos o ‘sodade’, da cesária évora, no são luiz, aquilo parecia um concerto de rock and roll, com os pais histéricos e a dançar», recorda.
plano nacional de orquestras
é esta aceitação da comunidade que possibilita que o professor wagner continue a projectar o futuro. entre os vários sonhos que quer concretizar, há dois que se atreve a dizer em voz alta. o primeiro é a criação, à semelhança do plano nacional de leitura, de um programa nacional de orquestras escolares. e o segundo é igualmente ambicioso.
«gostava de arrancar já este ano com a orquestra geraçãozinha, para crianças a partir dos 4 anos, especialmente por causa da comunidade cigana. já percebemos que se for mais tarde já é muito difícil porque eles ganham vícios muito cedo. já temos o sítio onde intervir e já temos uma canção, a ‘ritmos ciganos’, que é precisamente uma canção popular cigana».