Smartshops continuam legais mesmo após mortes

A Madeira é, desde a semana passada, o único sítio do país onde é proibido vender, publicitar ou ceder quaisquer substâncias psico-activas ou ‘euforizantes legais’ – como são conhecidas as drogas vendidas nas cerca de 40 smartshops que abriram em todo o país desde 2007.

a aplicação do diploma, que prevê coimas entre os 750 e os 44 mil euros para os infractores, foi desencadeada pela morte de quatro adolescentes no arquipélago, depois de terem consumido estas drogas, vendidas como fertilizantes, incensos, ervas, pós e sais de banho. «recebemos de pais e professores inúmeros sinais de preocupação com estes produtos e com a facilidade que os adolescentes, sobretudo do secundário, os compravam» – explica ao sol a deputada rafaela fernandes, autora da proposta da lei agora em vigor, que obriga as seis smartshops do arquipélago a encerrar portas.

a morte dos adolescentes foi apenas um dos sinais de alerta na região, que regista números dramáticos: nos primeiros nove meses do ano,170 pessoas foram internadas na casa de saúde mental s. joão de deus, no funchal, com surtos psicóticos por consumirem ‘drogas legais’.

três a quatro urgências por dia

aliás, «todos os dias, há três a quatro episódios de urgência relacionados com as novas drogas» – avançou ao sol nelson carvalho, responsável pelo programa de prevenção em comportamentos aditivos da madeira.

os dados expuseram ainda outro fenómeno: apesar de a média de idades dos internados se situar entre os 25 e os 35 anos, nove dos pacientes têm mais de 50. este dado surpreendeu as autoridades de saúde. «ainda não sabemos os motivos», admite nelson carvalho. «pensamos que tenha que ver com o facto de estas substâncias serem legais. muita gente pensa que é mais seguro».

mas os jovens são o grande foco de alarme na madeira, onde a realidade do consumo é diferente da do resto do país (até agora, por exemplo, a mefedrona, o fertilizante conhecido por bloom, era ainda permitida e consumida por via intravenosa). «as smartshops têm um marketing agressivo, com imagens muito apelativas, ligadas às festas, à alegria», nota rafaela fernandes.

além disso, começaram a abrir nas proximidades das escolas secundárias e das discotecas. num liceu do funchal, a preocupação dos pais motivou uma decisão desesperada: «em todos os intervalos, o porteiro ia para a porta da smartshop em frente para impedir os alunos de entrar», conta a deputada.

este tipo de medidas está, contudo, longe de ser suficiente. nos últimos meses, surgiu um novo perigo para a saúde pública com que as autoridades madeirenses têm de lidar: os vendedores de rua. «compram nas smartshops, ‘cortam’ as drogas com substâncias desconhecidas e vendem-nas na rua», conta um professor.

esta é a teia que as autoridades regionais esperam que a nova lei permita desfazer. caberá à inspecção regional das actividades económicas fiscalizar as lojas.

40 lojas em todo o país

apesar de existirem já 40 smartshops abertas em todo o país, as autoridades estão longe de encontrar uma solução legislativa que restrinja o acesso à estas drogas. isto apesar dos alertas dos médicos para o risco de estes produtos provocarem surtos psicóticos, muitas vezes sem regresso.

no início desta semana, entraram na urgência do hospital de évora dois jovens, de 17 e 15 anos, em psicose por terem fumado o incenso cm21.

não há, porém, qualquer registo oficial destas situações. e a lei portuguesa continua a não prever qualquer punição à venda destes produtos, apesar de o mercado ser inundado com centenas de substâncias diferentes.

os movimentos de profissionais de saúde e de cidadãos preocupados não param de aumentar. para carlos fugas, director clínico da comunidade lugar da manhã, em setúbal, e uma das vozes mais críticas da «banalização destas drogas», a resposta legal pode «passar por deixar preventivamente durante um ano qualquer produto que se pretenda introduzir no mercado», à semelhança do que fazem outros países.

o especialista não compreende, por outro lado, como estas lojas continuam a proliferar. «estamos em crise e só as lojas de venda de ouro e as smartshops continuam a abrir. porquê? o que fizeram os organismos competentes do estado durante cinco anos, desde que abriu a primeira?».

também o psiquiatra luís patrício, que se desdobra em iniciativas na internet contra as ‘drogas legais’, considera que «falhou a prevenção»: «ficámos à espera para ver o que acontecia», lamenta.

é urgente mudar a lei

«este é um fenómeno novo, para o qual a sociedade não estava preparada», nota félix carvalho, investigador do laboratório de toxicologia da universidade do porto, que colaborou no processo legislativo da madeira. «é urgente mudar as leis. o potencial de perigo é demasiado elevado», avisa.

a principal dificuldade dos especialistas prende-se com «a facilidade em alterar quimicamente as moléculas destes produtos». as mesmas drogas chegam ao mesmo tempo ao mercado, mas com uma composição diferente das que estão na lista das substâncias proibidas.

por outro lado, apurou o sol junto da direcção-geral da saúde (dgs), até agora os casos de intoxicações que chegaram às urgências não eram contabilizados como tal, por isso ninguém sabe qual a realidade nacional.

mas os casos sucedem-se. vasco, engenheiro florestal de 37 anos, e «consumidor de fim-de-semana» de drogas, é um exemplo. tinha «tudo controlado», conhecia os efeitos do que consumia e «as mocas que cada produto dava», mas não estava à espera dos efeitos da droga que comprou numa loja do cais do sodré, em lisboa.

aqui, vendem-se produtos «impróprios para consumo humano», segundo os rótulos, mas cujos efeitos no cérebro são explicados pelo empregado. a promessa era aliciante: uma viagem como a do ecstasy. «decidi experimentar blow», conta vasco. afinal, como era «legal, devia ser mais seguro». a experiência valeu-lhe duas semanas no hospital com um surto psicótico do qual não conseguia sair, nem medicado. «sentia o corpo deformado, parecia que se espalhava. foi um pesadelo», lembra.

e vasco foi para os médicos um caso de sorte: conseguiu sair. «é como jogar na roleta russa: é brincar com a vida. ainda não se sabe quase nada sobre os efeitos destes produtos no cérebro», avisa félix carvalho. o que se sabe, é que, «no mínimo, pode haver falência no sistema cardiovascular, nos órgãos periféricos e até morte».

saúde vai contabilizar casos

no início de outubro, as autoridades regionais de saúde receberam directivas para os profissionais contabilizarem os casos, preenchendo uma ficha onde serão descritas as substâncias na origem da emergência médica. foi ainda criado um grupo de trabalho para analisar o fenómeno e procurar soluções. o projecto smartshops, coordenado pelo director do programa para a saúde mental, foi espoletado por um aviso em sines. «recebemos um alerta da autoridade de saúde do litoral alentejano de que havia um pedido para abrir uma smartshop perto de uma escola secundária», conta álvaro carvalho.

o serviço de intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências (sicad) também está «atento»: «temos relatos de consumo destas drogas entre os mais novos», admite paula andrade, do sicad, explicando que a maioria dos jovens com problemas de intoxicação dirige-se às urgências.

sonia.balasteiro@sol.pt