juntem, em torno deles, autor e livro, um fenómeno viral de referência literária ou de moda pseudoliterata e de name dropping (menção sem conteúdo), alimentado pelo marketing editorial e, na sua base teórica, por uma certa crítica e pelos autores da escola de wallace (entre eles, zadie smith e os grandes amigos do escritor: jonathan franzen, donald antrim ou jeffrey eugenides, a quem chamava ‘os rapazes brancos’). e respirem fundo.
se mesmo assim se aventurarem à leitura, fica a sugestão prática: guilhotinem o livro para que o possam ler por partes, dispensando tendinites. se insistirem em mantê-lo intacto, separem pelo menos a parte das notas ou assinalem-na de forma a poderem consultá-la a qualquer momento. reservem largos meses para esta leitura e façam-na com um lápis e um bloco de notas à mão. preparem-se para, mesmo assim, no final, não apreenderem senão uma pequena parte desta proposta literária extravagante. feitas as apresentações, eis infinite jest, cujo título os dois tradutores portugueses (a tradução, levada a cabo intensivamente durante oito meses, é notável), salvato telles de menezes e vasco telles de menezes, pai e filho, traduziram para a piada infinita.
no acto v, cena i de hamlet, o príncipe monologa sobre a morte, enquanto segura na mão a caveira de yorick, um falecido bobo da corte. no início do monólogo, exclama: «helás, pobre yorick! eu conheci-o bem, horácio: um sujeito com infinita piada (infinite jest) […]» sim, foi de shakespeare que foster wallace recolheu o título da sua obra-prima. e é também aí que começa a mitificação deste livro e do seu criador, porque, suprema e triste ironia simbólica, quando o lemos, é como se segurássemos nas mãos a caveira que albergou a fonte do legado que ele nos deixou após uma morte trágica (por enforcamento, depois de múltiplas tentativas de tratamento químico, por internamento e até com choques electroconvulsivos).
a tradução infinita
a piada infinita, lançado em 1996, é um romance sobre depressão e várias outras desordens mentais e físicas, sobre família, consumos compulsivos, drogas, indústria do entretenimento, terrorismo e agências de segurança e mil outros subtemas explorados pelo autor com a minúcia de um pesquisador de nanopartículas. as personagens multiplicam-se a partir da família incandenza, sobretudo do que pode ser considerado o protagonista, harold (hal), que (como foster wallace o foi) é um jovem jogador profissional de ténis, «potencialmente sobredotado em matéria de ténis e léxico», cuja degradação mental acompanhamos até ao final do livro. a segunda figura principal, apresentada em flashback, é james, pai de hal, a quem a família chama ‘ele mesmo’, doutorado em física óptica, fundador da academia de ténis de enfield (central no romance, a par da ennet house, o centro de recuperação de tóxico e álcool-dependentes onde hal será internado), realizador (de infinite jest), alcoólatra, que se suicida (colocando a cabeça dentro do micro-ondas) aos 54 anos. ‘infinite jest’ é o nome do misterioso filme de entretenimento que, em cinco tentativas, james criou e cujo visionamento é de tal forma cativante e viciante que bloqueia a capacidade de acção dos espectadores – um grupo separatista quebequence procura obter a desaparecida cópia mestra do filme, para o usar em actos terroristas contra os eua.
«wallace é um barroco, um gongórico», defende salvato telles de menezes, que destaca a piada infinita como o mais difícil e o mais bem sucedido desafio na sua carreira de quarenta anos de tradução. a cada personagem, o autor conferiu uma figura e uma personalidade distinta, minuciosamente explorada em termos psicológicos, e um discurso distinto, que é seguido ou imitado, na sua forma, pelo narrador, sempre que se refere a cada uma delas. neste aspecto, a tradução portuguesa, muito fluida, torna-se uma espécie de co-criação. o estilo de wallace caracteriza-se pelo radical arrojo na composição, na gramática e na linguagem (incorpora muito jargão e terminologia técnica; reproduz estruturas gramaticais incorrectas e até erros ortográficos; há frases que duram três páginas; os títulos dos capítulos integram nomes de produtos), na minúcia (prodigiosa e obsessiva) da descrição e nos temas centrais: sátira ao mundo mediatizado e mercantilizado e à era da depressão, sátira ao modo como a natureza e pureza (também química) originais das personagens se perverteu e devido a que forças destrutivas, sátira à ironia, compondo um detalhado inferno que evoca a potência sugestiva do de dante.
dickens, moby dick
na verdade, para lá dos intricados enredos, que o autor desenvolve por vezes repetindo-se (o que ajuda o leitor), encontram-se no subtexto do romance múltiplas alusões literárias, a cuja compreensão total só um especialista conseguirá aceder. foster wallace tinha 33 anos quando infinite jest foi publicado. diz salvato telles de menezes: «é notável e quase inexplicável como, tão jovem, reuniu uma tão brutal extensão de conhecimentos literários, que só pode resultar de ter lido os livros originais, a fundo», disse ao sol. até à morte, o escritor continuou a escrever, deu aulas de escrita criativa e publicou reportagens jornalísticas e ensaios brilhantes. a sua bibliografia é composta por três colectâneas de contos, nove livros de não-ficção (três deles póstumos) e dois romances, um deles, the pale king, póstumo, inacabado e finalista do pulitzer prize 2012.
david foster wallace definia o que fazia como «ficção apaixonadamente moral», o que o aproxima dos existencialistas. escrevia na senda de thomas pynchon, mas preferia dizer que era na de don delillo. salvato telles de menezes defende: «o modelo narrativo do livro é dickens e moby dick, mas descortinam-se também, sobretudo na estrutura da frase, influências da literatura russa clássica ou da literatura francesa do século xx. wallace quis laborar numa transferência do pós-modernismo para o pós-pós-modernismo, uma ruptura feita de uma forma, em simultâneo, irónica e profundamente depressiva». por tudo isto, a piada infinita é um desafio ao qual poucos leitores conseguem aceder por completo, mas um feito extra-ordinário, que ficará na história da literatura.