A instalação do medo

O título desta crónica é roubado ao novo livro de Rui Zink, uma obra notável que devia tornar-se obrigatória nas escolas, se as escolas fossem o oposto do que são – como um dia hão-de ser: lugares onde se aprende a desinstalar o medo.

a história começa com a chegada de um par de técnicos que batem à porta de uma mulher anunciando que vêm instalar o medo na sua casa. ao longo da instalação, vamos percorrendo o catálogo dos medos humanos, que não é pequeno. o capítulo em que se procede à demonstração do medo tem como epígrafe a imorredoira frase do sábio antónio borges, e cito: «diminuir salários não é uma política, é uma urgência».

o medo foi, desde sempre, o assessor principal da política. mas agora que o tempo não está para luxos, fez um golpe de estado e tomou-lhe o lugar.

é muito mais fácil governar países através do medo do que através da negociação política – e a europa começa agora a entender o encanto e as potencialidades deste método que tanto sucesso económico garantiu à china.

o medo torna as pessoas muito mais produtivas do que a pura ambição. por isso, os neo-liberais entraram em metamorfose acelerada para se tornarem mais dirigistas do que o camarada hu jintao, e arranjaram na troika um comité central pós-moderno, que, como os comités centrais dos tempos soviéticos, significa emprego e segurança para o resto da vida, quer o povo coma raspas ou brioches.

o velho sonho de construir um mundo melhor para todos foi substituído pelo ainda mais velho discurso da pobreza honrada.

o problema é que é complicado ouvir serenamente um gestor multimilionário pregar a necessidade da pobreza alheia – e a antiga classe média que luta agora pela pura sobrevivência, revolta-se.

os jovens turcos da coisa financeira ( que se tornou a única coisa) não contavam com a revolta: os países magníficos como a china ou a união soviética nunca tiveram classe média; os que nunca tiveram nada convencem-se calmamente a ter pouco e calar.

«o medo, pouco a pouco, torna-se virtualmente a única realidade», escreve zink, na sua ficção mais verdadeira do que o pão de cada dia.

o medo varre todas as espécies de amor e garante a subsistência de uma única lealdade: a devida ao chefe. o estreitamento da oportunidade de ter um chefe, um trabalho – qualquer que seja – e um salário, exponencia o grau da subserviência.

sempre que abre uma vaga, as pessoas esgadanham-se para a conseguir, utilizando todos os métodos de pressão e influência. é esta a paisagem.

o medo devora sentimentos, dignidade, consciência – tudo o que representa a diferença e a excelência da humanidade.

os instaladores do medo pasmam de o ver tão eficaz. também eles têm medo: medo que a estratégia do medo tome um dia conta dele, e se vejam no lugar dos pobres que hoje cozem no forno do barro do terror de amanhã.

amanhã, não se esqueçam, estaremos todos mortos. a espécie humana é a única que o sabe – mas até a ideia da morte o medo parece ter comido.

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