Autora de Harry Potter arrisca romance para adultos

Aos 46 anos, com fama, fortuna e lugar entre os clássicos da literatura infanto-juvenil garantidos pela série Harry Potter (cujo sétimo e derradeiro volume, Harry Potter e os Talismãs da Morte, data de 2007), J.K. Rowling decidiu arriscar um romance para adultos.

lançado em inglaterra e nos eua em setembro último e agora em portugal, uma morte súbita narra como o microcosmos idílico de pagford, uma pequena cidade ficcionada no sudoeste de inglaterra, é virado do avesso pela morte inesperada do líder da comunidade, barry fairbrother, e pela sequente disputa de uma ‘vaga acidental’ no conselho comunitário, que poderá decidir o futuro de fields, um bairro social contíguo.

quando uma parte deste enredo básico foi revelada pela editora little, brown no início de 2012, alguém sugeriu, no site do guardian, um título alternativo: ‘mugglemarch’. sugestão brilhante, porque cruza a palavra muggle (no mundo ‘potteriano’ designa aqueles que não pertencem ao mundo da magia) com a referência ao clássico middlemarch: um estudo da vida na província, de george eliot.

junte-se-lhe a intenção declarada da escritora de escrever um romance realista e a sua paixão por charles dickens (o que remete para a sátira de retrato da província em os cadernos de pickwick) e o seu desejo de, por fim, escrever sobre os problemas sociais actuais (e poder incluir cenas de sexo) e os dados das pretensões de rowling a escritora para adultos estão lançados.

rowling pensou primeiro em publicar uma morte súbita sob pseudónimo, o que nos permite especular que, se o tivesse feito, o livro não chegaria a bestseller, mas não deixaria de ser elogiado pela combinação de escrita escorreita, história bem contada e boa gestão do suspense (sobretudo nas partes finais). nem mais, nem menos.

em uma morte súbita, rowling rejeitou a fantasia, mas manteve a moldura e a mecânica de uma narrativa moral. perdeu em estilo e originalidade o que talvez tenha pensado ganhar em crítica social e comédia negra. as personagens vivem dramas de violência doméstica, toxicodependência, abuso sexual, bullying, racismo, automutilação, até de reprimidos instintos pedófilos, mas nenhuma delas possui suficiente textura psicológica.

revelam-se quase só em diálogos banais ou na acção e esta traduz artifícios esquemáticos transpostos da série potter para um cenário real de papelão: a luta externa entre as forças do bem e as forças do mal (aqui traduzidas em agentes sociais em conflito na coexistência entre pagford e fields), a personagem do adolescente vítima e transgressor como veículo e símbolo de revelação da verdade, e a figura de um herói moral transcendente (o fantasma de barry fairbrother, miúdo pobre que se tornou cidadão exemplar, conciliador e justiceiro, tem um poder simbólico semelhante ao do órfão e mágico harry potter).

neste microcosmos (a província) escondido, a magia negra dos pecados e das injustiças será revelada por um ajuste de contas com a responsabilidade moral. pagford-mugglemarch é hogwarts para adultos e o lema de base mantém-se, mas deslocado e sem brilho: draco dormiens nunquam titillandus (nunca faça cócegas num dragão adormecido).

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