‘O problema do Governo é não conhecer a função pública’

Luís Valadares Tavares, ex-presidente do Instituto Nacional da Administração, alerta o Governo para o perigo de estar a criar um bloqueio ao desenvolvimento do país, ao ‘esmagar’ a função pública.

como vê o anunciado esforço do governo em reformar o estado?

está a insistir-se muito na ideia de refundação do estado. mas as funções do estado serão sempre as mesmas. além das funções de soberania, tem que cuidar do bem estar da população e promover o desenvolvimento. não me parece razoável hoje em dia reduzir as funções do estado. é uma forma errada de colocar a questão. não concordo nada com a forma como o governo agendou o assunto. deve-se é tornar o estado mais eficiente e, aí, pouco tem sido feito.

porquê?

porque há pouco conhecimento da máquina da administração pública. em 2012, houve uma grande preocupação em reduzir a despesa pública. de acordo com os dados da direcção-geral do orçamento, as despesas de pessoal na administração directa, institutos públicos, regional, local e segurança social representarão no final deste ano 15 mil milhões de euros, menos 14% do que em 2011. enquanto isso, as aquisições de bens e serviços – viagens, telecomunicações, serviços de segurança, etc – atingirão os 22 mil milhões de euros, ou seja, mais 14% do que em 2011. e aqui não incluo os dados da saúde porque é dirigida por um ministro que conhece muito bem a administração pública e tem os gastos efectivamente controlados. ora, quando o primeiro-ministro pede para se saber como se podem cortar 4 mil milhões de euros, temos uma proposta muito simples!

cortar nas aquisições.

sim, mas há cinco administrações públicas. a directa está controlada, o governo não tem conseguido controlar é as despesas nas empresas públicas, institutos públicos e nas administrações regional e local.

vítor gaspar não controla a administração pública.

é o ministério das finanças que realmente tem esta tutela. e seria importante interpelar o governo sobre como é que isto acontece. os funcionários públicos e os pensionistas que ficaram com menos 14% perguntam qual é a moral de haver mais 14% nas aquisições de bens e serviços. vão sentir-se desiludidos e esmagados por esta realidade. por que é que este assunto não está na agenda política quando devia estar? estamos a viver uma situação surreal.

o governo diz que os esforços não estão a ser em vão, mas esses cálculos apontam para o contrário.

exactamente! houve passos importantes ao nível dos concursos públicos, mas a maior parte destas aquisições são feitas por ajuste directo. ilustra bem como é possível manter as funções do estado e poupar dinheiro. e os dados não são meus, são do ministro das finanças. o estado devia perceber que é urgente montar um sistema de regulação e controlo de gestão pública. enquanto não perceber isso não controla o défice. mas o governo prefere cortar nas pensões, reduzir o subsídio de desemprego ou os salários. os salários da função pública não chegam a 12% do pib, quando a verba para aquisições e investimentos, ou seja, contratos com terceiros, ronda os 17%. para reduzir a despesa pública, o governo não deve ter a obsessão em reduzir os salários da função pública! a prioridade é controlar estas várias administrações públicas (indirecta, regional, etc). o problema é de competência política governativa e de conhecer a administração pública. o governo tem poucos membros com sensibilidade e com experiência de administração pública. há uma dose de muita ignorância sobre as cinco administrações públicas diferentes que temos. e é mais difícil actuar sobre essas do que lançar taxas. mas nem sempre podemos fazer o que é mais fácil.

disse há dias que há cortes no estado que acabam por gerar mais despesa do que poupanças. está a falar de quê?

por exemplo, do siadap, o primeiro sistema de avaliação de desempenho da função pública em função de objectivos. quem tinha excelente, tinha promoção mais rápida. foi suspenso. e este corte não se traduziu em grandes economias. a despesa associada a esta medida era mínima mas era um sinal, uma motivação. assim, temos um aparelho administrativo profundamente desmotivado e considerado o mau da fita e o culpado do défice. a consequência é a não-operacionalidade da administração pública face às medidas que o governo quer implementar, como é o caso da lei das rendas ou as tarefas para do rsi – iniciativas virtuosas que não conseguem chegar à prática.

é o próprio governo a dificultar a sua tarefa.

de facto, é uma espécie de boomerang que cai por cima do próprio governo. isto é dramático e impede o relançamento de um processo de desenvolvimento. e não se corrige o défice. é muito importante ter uma administração eficiente. devíamos apostar na criação de competências especializadas. em vez de estarmos sempre a falar em reduzir o número de funcionários públicos, numa perspectiva quase de decadência.

competências especializadas em que áreas?

na contratação de bens e serviços, com a passagem para a via electrónica, porque já vimos que não está a correr bem. outra área é o egovernment, como a loja do cidadão. a terceira é o relacionamento com a actividade económica e empresarial. há ainda um conjunto de áreas em que a administração pública não devia ter funções operacionais, mas de regulação, como por exemplo a área de colocação de desempregados. as experiências internacionais mais positivas mostram ser preferível que este tipo de actividade seja feito por unidades empresariais. em vez de ser o iefp a fazer o matching entre procura e necessidade, isto pode ser feito com pequenas equipas e com pessoal muito especializado.

é a favor de pacote de rescisões amigáveis na ap. onde devem ocorrer?

o nosso problema não é de número, é de nível de competências. algumas pessoas deviam ter formação e ser redireccionadas. outras não. mas paralelamente temos que contratar pessoas altamente competentes. não é possível reformar a administração pública sem substituir as pessoas menos qualificadas por outras mais qualificadas. é essencial ter uma função pública competente e motivada. e há ainda outra área onde se devia mexer: as redes do território. em vez de se fechar serviços no interior, o que contribui para a desertificação, devia-se fazer a integração dos vários serviços locais num mesmo edifício. é uma poupança gigantesca. 30 ou 40% do orçamento é gasto com a própria máquina de administração. mas tem havido uma certa tentação de tratar os problemas errados e não os problemas certos.

não vai ser preciso aumentar taxas moderadoras e as propinas?

para reduzirmos o défice temos que ser capazes de controlar as ppp e controlar as aquisições. em 2012, sete mil milhões de euros são só para pagar encargos com as ppp e transferências para empresas públicas. não precisamos de aumentar taxas moderadoras e introduzir taxas na educação.

helena.pereira@sol.pt