que melhor forma de avaliar uma investigação jornalística senão pela reacção que provoca aos visados? no livro sua santidade são reproduzidos 23 memorandos e cartas que estavam no escritório do papa (e as fontes passaram centenas de outros documentos confidenciais). como se estivesse a efabular um outro o código da vinci, o autor foi comparado a dan brown pelo secretário de estado do vaticano. e as revelações foram chamadas de vatileaks pelo porta-voz do vaticano, tentando pôr o caso no mesmo plano da wikileaks. há um ponto em comum, mas esse não desvaloriza a enorme fuga de informação: tal como a fonte suspeita de ter passado a informação a julian assange (o soldado bradley manning) está preso, o mordomo do papa foi detido e condenado a um ano e meio de prisão. três dias antes do natal, o papa perdoou paolo gabriele e este saiu em liberdade.
«foi uma reacção musculada», diz o autor do livro, gianluigi nuzzi. «perante uma vontade e uma necessidade de uma maior transparência, de denunciar coisas pouco claras, privou-se a liberdade de uma pessoa em resposta a uma denúncia. depois dos ataques pessoais tentou desviar-se as atenções do conteúdo do livro, que é um manifesto desapiedado da crise da cúria romana. podemos entreter-nos à procura das minhas fontes ou podemos procurar a crise da cúria romana, que se reflecte depois na crise da igreja no mundo», sustenta.
antes do livro que veio promover a portugal, o milanês já tinha publicado o best-seller vaticano s.a., sobre as contas obscuras do banco da santa sé, e outro de que é co-autor, sobre as ligações da máfia à política, metastasi. mas nunca tinha vivido uma experiência como a que relata no início de sua santidade: o primeiro encontro com a fonte principal podia fazer parte de um livro de aventuras: «propõem-me um passeio, mais precisamente uma volta de carro […]. permanecemos no carro quase uma hora. na realidade a distância a percorrer é de poucas centenas de metros – bastariam alguns minutos mas, ao invés, percorremos as mesmas estradas vezes sem conta», escreveu.
a fonte estava num apartamento vazio e falou em nome de um grupo que vive e trabalha no mais pequeno estado do mundo e que se mostrou revoltado perante uma série de situações indignas.
«encontrar um culpado é distrair a opinião pública. na história do vaticano nunca alguém foi detido por lavagem de dinheiro ou por pedofilia, mas sim alguém que tirou fotocópias. a pessoa que era responsável por paolo gabriele, georg gänswein (secretário pessoal do papa), não foi demovido nem despromovido, foi promovido (prefeito da casa pontifícia). e quem era responsável pela segurança, o chefe da gendarmaria, não foi despromovido. num país normal seria enviado para uma missão em áfrica a contar cobertores. todo o sistema de responsabilidades mantém-se igual».
negócios pouco católicos
os documentos trazem à tona pormenores sobre muitos casos dos homens que rodeiam bento xvi. quem fica pior no retrato é o secretário de estado, tarcisio bertone. como se lê no livro, a sua maior ambição será a de suceder a joseph ratzinger. e para tal, como número dois da hierarquia, põe os críticos «no olho da rua» e promove «eclesiásticos de sua plena confiança» aos lugares de chefia dos sectores em que se mexe com dinheiro. diz nuzzi ao sol: «é uma pessoa com uma visão muito cínica e lúcida do poder, uma figura em antítese à de bento xvi. vou ler-lhe o que me escreveu um amigo vaticanista: ‘nesta avassaladora guerra no vaticano, o cardeal bertone realizou uma empresa titânica: conseguiu fazer com que se coligassem contra si todas as facções eclesiásticas, as conferências episcopais e os grupos da cúria. enquanto o papa não o destituir, o vaticano vai continuar um oeste selvagem até tornar-se uma anarquia’. eu partilho desta opinião».
um presépio de meio milhão
o arcebispo viganò terá sido a primeira vítima de bertone. em 2009 tinha sido escolhido por bento xvi para o cargo de secretário-geral da governadoria. ou seja, geria todas as compras, adjudicações e a manutenção das infra-estruturas. em 2011, é destituído por bertone três anos antes do previsto e enviado para os estados unidos como núncio apostólico (o equivalente a embaixador). quando soube do seu afastamento, escreveu ao papa e deu a conhecer dados reveladores: só num ano conseguiu poupar 850 mil euros na manutenção dos jardins ou 250 mil euros no presépio da praça de são pedro, que em 2009 custara 550 mil euros. mas o papa não desautoriza o secretário de estado e o bom trabalho de viganò é interrompido.
nem todos os planos correm de feição ao cardeal bertone: tentou criar, sem sucesso, uma rede de hospitais do vaticano, que passava pela aquisição do san raffaele, após a morte do seu fundador, o controverso padre verzé, amigo de silvio berlusconi, bem como do suicídio do vice-presidente do hospital, mario cal. apesar da instituição ter um buraco de 1,5 mil milhões de euros, bertone tentou que gotti tedeschi, o presidente do ior, o banco do vaticano, levasse adiante o projecto. «mas quando tedeschi viu que estava diante de um buraco negro e com grande risco de expor o vaticano, entrou em colisão com bertone, o que levou à demissão do banqueiro». o caso san raffaele ainda vai dar que falar. o então presidente da região da lombardia, roberto formigoni, responde em tribunal por corrupção.
o que leva a outra questão, às relações entre os políticos italianos e o vaticano. «a política em itália é neste momento especialmente fraca e frágil, e a influência do vaticano prevalece». o ministro das finanças de berlusconi, giulio tremonti, é um exemplo das ligações privilegiadas. há 20 anos criou «um sistema genial» através do qual a igreja católica recebe mil milhões de euros por ano («ao preencher o irs o contribuinte pode optar a que religião dar 8 por mil dos rendimentos. o dinheiro é canalizado de forma automática a quem recebe mais cruzes, mesmo de quem não tenha escolhido»). mas o governo de mario monti não será diferente. «tem seguramente na sua equipa pessoas com relações fortes na santa sé. um caso emblemático é lorenzo ornaghi, que foi reitor da universidade católica até setembro, acumulando os cargos». e mesmo que o país vire à esquerda, nada mudará, porque «há um lóbi transversal a todos os partidos».
o jornalista conclui: «a itália é um país muito complicado. há pouco tempo houve um casamento combinado entre uma filha de condello, um importante boss, com o filho de outro chefe mafioso, na basílica de reggio calábria. a certa altura, o monsenhor que ministrava o matrimónio leu um telegrama de felicitações assinado pelo santo padre. com isto não quero dizer que o papa fosse amigo deles ou conhecedor da situação; mas também é evidente que não foram realizados controlos sobre a moralidade destas pessoas».