Lilia Cabral: ‘A vaidade bem colocada é uma coisa bonita’

Filha de mãe açoriana e pai italiano, nascida em São Paulo, formou-se em Belas Artes e teve no teatro a rampa de lançamento para a TV. Ainda adolescente chegou a jogar basquetebol, mas deixou o desporto para se tornar «uma hippiezinha toda chique». Agora está no ar com a novela Fina Estampa, onde contracena com…

numas notícias com acento, noutras sem, a pergunta impõe-se: afinal como se escreve, é lilia ou lília? «até hoje ligam lá da rede globo na hora de colocar os créditos para saber como fica. muita gente pensa que é com acento mas a minha mãe registou sem. acho que por ser um nome de origem russa». desfeita a dúvida sobre a assinatura – numa entrevista ao sol durante uma viagem-relâmpago a lisboa – a actriz brasileira define-se, antes de tudo, como uma mulher de família.

nasceu quando a sua mãe já tinha 40 anos, teve a sua filha aos 39 e acaba de interpretar a sua primeira protagonista em novelas após 30 anos de carreira. sente que vive fora de tempo?

acho que cada um tem a sua história. a minha filha chegou mais tarde, mas em compensação eu me sinto extremamente jovem, já que acompanho os 15 anos que ela tem e porque dentro de mim tive de fazer muita reciclagem. isso, inconscientemente e até conscientemente, me ajuda a estar na vida de uma forma leve. quanto ao trabalho, nunca fiquei triste por não ser a protagonista porque fiz muita coisa bacana e até fui indicada para o emmy duas vezes sem ser protagonista. primeiro com a novela páginas da vida e depois com viver a vida. lembro que da segunda vez até levei um susto. mas na verdade todos os personagens que fiz sempre foram protagonistas na minha vida. não fiquei pensando se era maior ou menor.

mas foi o papel principal como griselda de fina estampa que a encheu de distinções, uma deles entregue pela presidente do brasil, dilma rousseff. esse prémio teve um sabor especial?

fiquei muito feliz porque esse prémio, da revista isto é, é muito importante no brasil. premeia as personalidades, homens ou mulheres, que vingaram não só pelo facto de fazerem bem o seu trabalho, mas por aquilo que esse trabalho significou para o país ao longo do tempo. se já foi surpreendente ganhar, imagina ver a presidente levantar para me entregar o prémio, imagina ouvir ela dizer que assistia à novela e gostava muito.

deu para trocarem impressões?

um pouco. deu para perceber que a presidente conhece o meu trabalho, não só o das novelas, mas também o de filme e seriado que fiz, divã. então é isso: quando você está no set de gravações nem imagina que a presidente do brasil está assistindo. mesmo que sejam episódios gravados, como é o caso dela, que grava para assistir no sábado. jamais esperaria que isso pudesse acontecer.

é descendente de uma portuguesa e de um italiano, mas nasceu no brasil. o que fez isso pela sua identidade?

essa mistura toda faz-me sentir orgulhosa, porque saber que tenho um pedaço de mim, antepassados aqui em lisboa, esta cidade tão bonita, e ao mesmo tempo na itália… é uma forma que a gente tem de olhar para trás e até se inspirar, sabendo de onde vêm as nossas origens.

tem família em portugal?

os tios não, que já morreram todos, mas tenho muitos primos.

mantêm contacto?

por internet. desta vez nem falei que vinha, porque vim correndo e não tinha como estar junto a não ser que estivesse alguém em lisboa. mas só tenho família no porto e nos açores.

é verdade que se inspirou nas suas origens portuguesas para ‘trabalhar’ o bigode da sua protagonista?

gente, basta ir no interior de portugal. em lisboa não porque todo o mundo é chique, mas lá no interior vê se alguma mulher tira o bigode. nenhuma. vivi com muitas imagens dessas na infância, porque a minha mãe era dos açores. então tinha algumas coisas que eu via muito: aos 40 anos as mulheres pareciam que tinham 50 ou 60, apresentavam os dentes sem nenhum cuidado e os cabelos que começavam a ficar brancos assim permaneciam. mas lógico que isso não era só um comportamento português. em são paulo a gente também via isso muito. a mulher não trabalhava, vivia em função da casa e do marido e não tinha um estímulo para se arrumar. isso só mudou quando começaram a criar independência, mostrando que podiam se tornar pessoas importantes para a sociedade e não apenas para os homens. eu sou brasileira e vivi isso, vi o jeito deteriorado da mulher se colocar e, ao mesmo tempo, vi o facto de ela mostrar que pode e deve ter uma postura bacana. as mulheres mudaram muito e a história do bigode é só voltar um bocadinho atrás e pensar: ‘eu vou relaxar na vida, eu só tomo banho’. é o que a griselda faz na novela: toma banho e acabou.

assume que é uma pessoa vaidosa. custou-lhe despir a vaidade feminina para as câmaras?

no começo foi bastante complicado. achei que de repente as pessoas não me viam como uma mulher simples, daquele jeito. mas quando o aguinaldo [silva, autor da novela] falou que queria que eu fizesse o personagem, aceitei imediatamente, e só depois é que fui ver o tamanho do problema [risos]. a parte complicada num papel desses é que a gente corre o risco de ser achincalhada. você está entregando de bandeja para muita gente maldosa a possibilidade de te ridicularizarem. mas tinha de fazer o personagem e ele era desse jeito. se mudasse alguma coisa não seria o que estava escrito, e como estava bem escrito eu me segurava nisso, naquilo que tinha em mãos e assim segui adiante.

voltou aos tempos em que jogava basquetebol, quando a sua feminilidade ainda não tinha desabrochado?

é, tem essa história de ter jogado basquete e de a minha vaidade só ter aparecido depois, quando comecei a ir a festinhas. no início eu estava sempre assim, de qualquer jeito, e via que ninguém olhava para mim. aí um dia eu falei: ‘não vou jogar mais basquete porcaria nenhuma, vou cuidar de mim’. comecei a usar minissaia e até salto anabela [cunha]. logo eu que não sabia andar de salto direito! tinha 15 ou 16 anos e era uma hippiezinha toda chique, não era hippie de mochilão nem poncho. era chique, não no sentido de ter dinheiro, mas de bom gosto que, modestamente, tinha bastante.

também era uma hippie clean, no sentido de nunca ter consumido drogas. chegou mesmo a fingir que fumava maconha?

meus amigos todos consumiam e eu fingia. nunca me apanharam e todo o mundo se divertia. foi tudo uma grande brincadeira na minha vida porque já sou muito doidinha, não preciso de estímulos. a única coisa de que preciso às vezes é de remédio para relaxar e dormir, principalmente no avião. mas de resto eu não tomo remédio, não fumo e só bebo água e refrigerante.

sempre foi assim ou teve alguma experiência que a influenciou nesse sentido?

quanto a beber talvez. tinha um padrinho que era alcoólatra, coitado, então percebi que o álcool muitas vezes é uma fuga em que você procura alguma coisa para se anular. acho que desde pequena, por ser filha única, fiquei com a sensação de que tinha de enfrentar as coisas por mim. sempre foi uma coisa minha mesmo: evitar qualquer coisa que me tire o registo e eu não possa enfrentar. por isso na adolescência, quando todo o mundo tem interesse e curiosidade em experimentar, eu nunca tive.

não temia ser considerada careta?

não. eu sou é muito responsável. careta chega a ser chato, careta é aquela pessoa repressora que não deixa ninguém fazer nada. eu não. cada um cuida da sua vida e para mim está bom.

sempre quis ser actriz?

nunca tive dúvidas quanto a isso.

o seu pai é que não achava muita piada. quando é que assumiu a opção?

aos 23 anos porque fui chamada para fazer uma novela e não tinha como continuar escondendo. aí comecei a aparecer na televisão, a ganhar o meu dinheiro e o meu pai viu que era uma profissão que poderia levar adiante.

mas antes disso estudou artes plásticas.

fui fazer belas artes para uma faculdade de artes plásticas, mas que tinha todas as carreiras: artes plásticas, música, teatro…

chegou a concluir esse curso?

sim, sou formada. quando entrei para belas artes tinha de 17 para 18 anos, e quando ia fazer 21 anos entrei para a escola de arte dramática. então como já era maior de idade falei lá em casa que ia estudar à noite, sem contar que tinha entrado nessa faculdade. falava que estava na usp [universidade de são paulo] e o meu pai acreditava. fiquei três anos na escola, que era acoplada à usp, e quando acabou abri o jogo.

depois entrou logo na novela os imigrantes?

primeiro ainda fiz os adolescentes. mas enquanto estava estudando fui convidada para fazer uma peça infantil e fazia muita publicidade. nossa! eu fazia publicidade a tudo. só não fiz de cigarros nem bebidas porque não queria. mas fiz do caldo de galinha e de todos os produtos de limpeza que possam imaginar.

ainda assim foi com o teatro que a sua carreira deu um salto.

é. foi a peça feliz ano velho que me deu projecção. o [actor] paulo betti, com quem tinha feito a novela os imigrantes, me chamou para entrar e a peça acabou fazendo tanto sucesso que depois de ser apresentada em são paulo fomos para o rio de janeiro. daí chegou o convite da globo.

quando assinou com a tv globo os valores do contrato eram baixos porque estava a começar. depois comentou que esse começar foi-se renovando. já parou de começar?

só em 1993. entrei na tv em 1984 e deixei de começar quase 10 anos mais tarde.

isso não lhe criava ansiedades acrescidas?

lógico que muitas vezes há isso, até com os próprios personagens, de pensar: ‘mas eu gostaria de ter feito aquele’. por uns anos tive ansiedade, mas depois da primeira novela que fiz do maneco [manoel carlos], em 1995, história de amor, a minha ansiedade foi diminuindo. essa novela veio na hora certa porque me levou por um caminho bem mais sério, mais respeitoso na própria televisão. começaram a pensar em mim para outros papéis.

vêcom bons olhos a entrada da sua filha nesse meio?

com óptimos olhos. ela agora está fazendo aula no [teatro] tablado. aliás, o maneco no outro dia falou, quando fomos tomar um café e a giulia estava junto: ‘sabe giulia, a profissão de actriz é a profissão mais bonita para uma mulher’. quando ele falou isso eu pensei: ‘é verdade, a profissão de actriz é a profissão mais bonita para uma mulher’.

porquê?

ah, porque você como mulher vai fazer várias mulheres, vai falar poesia, vai se arrumar ou não, vai-se caracterizar, vai mexer com você em todos os sentidos. na verdade acho que vamo-nos conhecendo muito e precisamos disso. ao mesmo tempo, a vaidade e a evidência bem colocadas são muito bonitas. é bom ver um bom trabalho e dizer: ‘olha, eu me identifico com aquela mulher’. acho que maioria das opiniões são muito mais positivas do que negativas.

disse em tempos que agradece ao seu marido por ter introduzido o conceito de família na sua vida. não trazia isso dos seus pais?

a mudança está nos filhos. quando conheci o ivan tinha acabado de me separar e não tinha filhos. tinha 37 anos, o ivan já tinha 46 e três filhas mais velhas. eu estava assim: será que ele quer ter mais filhos e começar tudo de novo com um bebé? aconteceu que ele queria, para ele era importante casar, ter mais um filho e viver em família. é por isso que eu digo: ele introduziu isso na minha vida e para mim a família é tudo. a primeira coisa é a família e só depois vem o trabalho.

já tinha excluído a hipótese de ser mãe?

engraçado isso, não sei se porque com a minha mãe também aconteceu tarde, não tinha muito essa preocupação. a giulia nasceu eu já tinha 39 anos e a sensação que sempre tive é que ia acontecer. não sei se por ser a caçula da família e ter vivido com muita gente de mais idade, mas via essas pessoas mais velhas vivendo. cada ano era mais um ano e era uma alegria. por isso não tive essa trajectória de perda, acho que não perco com a passagem dos anos, só estou ganhando.

paula.cardoso@sol.pt