manuel fúria contempla os lírios do campo é a segunda parte de um tríptico que começou em 2008, com manuel fúria apresenta as aventuras do homem arranha. o que os distingue?
o primeiro disco tem a ver com ser de uma terra pequena, ser adolescente mais tempo do que é suposto e estar numa cidade grande como lisboa. um bocado como os verdes anos, do paulo rocha. neste segundo, o narrador da canção está cansado da cidade, do ruído urbano e vai, ao longo do disco, procurar um silêncio que, provavelmente, é possível encontrar. é uma espécie de lugar rural ideal, mais perto de uma ideia de simplicidade que se vai perdendo.
comparando com o trabalho que fez com os golpes há diferenças, especialmente ao nível dos instrumentos e arranjos. quis-se demarcar da banda?
orgulho-me das coisas que fiz com os golpes, fizemos coisas mesmo boas e não tenho qualquer intenção de me demarcar, até porque a narrativa que exploro continua a ser a mesma. a grande diferença do que estou a fazer agora para os golpes é o som, os instrumentos e os arranjos. os golpes era uma coisa quadrada, viril, mais masculina e, também, estandardizada do próprio rock – baixo, bateria, duas guitarras e voz. os lírios do campo não tem nada a ver com isso, é muito mais curvilíneo, feminino, com violinos, sintetizadores, acordeão, bandolim, metais… mas isso também tem a ver com a altura em que comecei a fazer estas canções e as fui imaginando com muito mais coisas a acontecer. quando pego numa viola ou vou para um teclado o arranjo começa a desenvolver-se automaticamente na minha cabeça e estas canções exigiam uma coisa grande, com muita gente, com muitos instrumentos.
nos dois discos explora a relação campo/cidade. que fascínio é este?
esta relação não é novidade na vivência dos portugueses. o eça de queirós escreveu a cidade e as serras, o almeida garrett viagens na minha terra. são temas que têm a ver connosco, com a nossa realidade e, na medida em que empatizo com esses temas e tenho uma ligação pessoal a eles – nasci em lisboa e fui viver para santo tirso, passei pelo sítio da minhas raízes, a aldeia dos meus avós –, exploro-os à minha maneira. é aí que aparece a fantasia. há ali partes de mim, mas é pop, é outro degrau ontológico. há um dramatismo enorme, uma propensão épica qualquer que torna a coisa muito maior daquilo que eu próprio sou.
cresceu em santo tirso. em que medida isso influenciou a sua música?
santo tirso é uma daquelas cidades típicas do vale do ave, encravadas, confusas, com problemas de identidade. não se sabe bem se é uma coisa rural ou industrial, se é uma vila grande ou uma cidade pequena. de alguma maneira, aquilo que faço tem a ver com estar encravado. estas personagens estão encravadas entre realidades, entre questões de identidade e, em última análise, portugal também está encravado porque nunca está bem consigo próprio e, como consequência, os portugueses também não se sentem resolvidos. e não é só por estarmos em crise, é algo muito maior do que isso. eu procuro uma claridade, uma limpidez, um estado de graça qualquer em que não nos encontramos. há um objectivo para lá de cantar estas canções, quero que elas interfiram.
como a música de intervenção?
não gosto desse termo e não tenho o objectivo de ter consequências políticas. sinto o que faço mais como uma condição, uma luta qualquer. interesso-me pelas coisas de portugal, exploro-as porque tenho uma propensão para gostar disso e canto com esses imaginários.
falou em luta. que luta é essa?
é algo que ultrapassa a própria música. quero que haja uma reconciliação das pessoas com a sua identidade colectiva. é tudo em inglês, faz-me confusão. no outro dia, passei pela sede da edp e eles tinham quatro slogans e eram todos em inglês. às tanta, portugal desaparece e eu não quero que isso aconteça. para isso, é fundamental existir essa reconciliação das pessoas com a história, com as raízes, com essa coisa que não se consegue tocar que é a alma portuguesa.
disse numa entrevista que isto não vai a lado nenhum enquanto houver ‘malta a fingir que é inglesa e americana’. não é arrogante?
é uma realidade. um tipo vai para um palco e canta ‘one, two, three’ e, depois, está a falar português nos bastidores. isto faz algum sentido? não faz, ainda para mais ? quando é uma atitude tão generalizada. desde o d. joão v, que quis ser um rei francês em portugal, que as coisas não andam bem. os modelos portugueses são impecáveis, vamos ler a história e com d. joão ii as coisas funcionavam bem, democraticamente e tudo. essa minha afirmação só soa a arrogante porque vivemos num país pequeno e muito irritante. um tipo não pode dizer nada em tavira que em bragança vai logo alguém responder ‘esse tipo é um palerma’. em inglaterra, os irmãos gallagher dizem disparates permanentemente e o morrissey diz as coisas mais polémicas e isso tem graça. dá alguma piada ao imaginário da música pop. quem são estas pessoas que só fazem música, mas depois têm esta voz que desinstala?
o que define então o pop português?
não faço a mínima ideia, mas no meu caso parece estar a resultar. não faço aquilo que fazia o fausto ou, agora, faz o b fachada ou o jorge cruz [diabo na cruz], de pegar em instrumentos tradicionais portugueses, como as [violas] braguesas, e tornar aquilo rock. isso não me interessa muito. a música pop foi inventada pelos beatles, mas hoje em dia já não tem berço. posso enterrar a mão dentro da terra em portugal e aquilo que sai é rock. como sou um tipo encantado com as coisas portuguesas, quando pego nesses códigos pop/rock eles, necessariamente, saem portugueses.
então por que só exportamos o fado?
não sei que tentativas existiram de exportar outra coisa qualquer cantada na nossa língua para além do fado, mas o fado resulta porque segue esta lógica de ‘só vou conseguir que um tipo em tóquio ache graça à música que faço se o meu vizinho gostar’. começa tudo nessa célula mais pequena que é cantar para o meu bairro, a minha cidade, o meu país. o fado nasce na mouraria, eles cantam uns para os outros, mas de repente rebenta para o mundo porque tem verdade. o teste do teu bairro é o melhor medidor de verdade. ninguém mais do que o teu vizinho vai conseguir perceber se aquilo que estás a fazer é verdadeiro ou não. se for, ele vai comungar disso. nesse sentido, o meu bairro é portugal. é como os tipos da factory [editora de manchester que lançaram os joy division]: pensar regional, agir global. mas isso não foram eles que inventaram, fomos nós, com os descobrimentos.
vive povoado de referências do passado. sente que nasceu na época errada?
provavelmente nasci no século errado. já deu para perceber que, de alguma maneira, não sou um homem deste tempo e também faço questão de não o ser. é um tempo confuso e o mundo, a vida e as coisas podem ser muito mais simples, transparentes e silenciosas. procuro essa simplicidade e acho mesmo que esta atitude pode começar cá.
gosta do revivalismo?
não é um exercício de revivalismo, pelo menos não o encaro assim. não tenho essa formatação darwinista da maneira de encarar o tempo. tenho é uma empatia com certas coisas que foram feitas em determinadas alturas cujo tempo não as torna mais ou menos válidas. mas a verdade é que houve, de facto, alturas em que se fizeram coisas mais interessantes do que se fazem agora. por este rio acima, do fausto, por exemplo, continua a ser tão pertinente como quando foi lançado.
estão a surgir cada vez mais bandas a cantar em português. é um sinal de que a sua luta está a ganhar adeptos?
não sei se tem a ver com as coisas que faço ou se há, simplesmente, um cansaço geral de se estar sempre a ouvir coisas em inglês feitas cá. posso ter contribuído, mas não é uma responsabilidade exclusiva minha. as pessoas da florcaveira já cantavam antes de aparecer.
mas o tiago guillul, o samuel úria e, até, o b fachada nunca tiveram um sucesso radiofónico como ‘vá lá senhora’, dos golpes.
os golpes chegaram longe, mais longe do qualquer um de nós, mas também o que chegou foi uma canção. quase ninguém sabe que sou eu que canto essa música. é uma canção boa para partir pedra, mas não chega. ainda há imenso por fazer, muitos discos por gravar e não me sinto minimamente tranquilo com nada do que tenha feito até agora.
os golpes terminam no final de 2011, quando estavam em ascensão em termos de popularidade. por que acabaram?
porque chegou a altura para isso. é o máximo que posso dizer sobre o assunto. fizemos coisas incríveis, mas chegou a altura de seguir caminhos separados…
os golpes foram o seu primeiro projecto ou a música começou antes?
comecei a editar com o homem-arranha, depois foram os golpes, mas sempre tive bandas, nunca gostei foi muito delas porque a malta queria toda cantar em inglês. sempre achei esse fingimento um provincianismo e, quando cheguei a lisboa, com 18 anos, para estudar filosofia, decidi que, a partir daí, só ia cantar em português. isso transportou-me para uma ideia de honestidade e de só cantar coisas que têm a ver comigo. quero que a minha música comungue da verdade e não seja um exercício farsola. se cantar sobre deus, isso não pode ser uma coisa totó porque é das coisas que são mais importantes para mim.
qual é a sua relação com deus?
começou por ser uma relação construída pela educação católica que tive, estudei num colégio de jesuítas, mas agora ultrapassa isso. na minha adolescência tive uma crise de fé, deixei de acreditar, e depois tive uma conversão adulta.
o que motivou essa crise?
o meu interesse pela filosofia. comecei a ler muita coisa e a pôr outras em causa. mas depois, com 19 ou 20 anos, fiz uma espécie de retiro em loyola, no país basco, a terra natal do santo inácio, fundador da companhia de jesus, e aí voltei a acreditar. mas não foi uma coisa que veio do nada, houve uma vontade de voltar a acreditar em deus. não conseguia, tinha muitas barreiras, que vieram todas a baixo em loyola. foi um processo que tive de fazer. é preciso estar preparado para acreditar e fui-me preparando. se estiver o dia todo a apanhar sol é complicado ter uma epifania qualquer. elas existem porque há uma predisposição, que se constrói quando se procura viver em plenitude.
é fácil acreditar em algo que nunca viu?
já vi, ele já esteve cá connosco, chamava-se jesus. quando estou com os olhos suficientemente lavados apercebo-me da presença dele. é só estar atento e ter essa disposição, que não é fácil. trocado por miúdos, é como namorar com alguém. se não investes na relação, não é namoro nenhum. deus está sempre a tentar procurar-te, se não queres estar com ele, não estás. mas ele dá-te essa liberdade, não se impõe. agora, se queres estar com ele, se fazes esse trabalho – que passa por viver a fé em comunidade, orar, ir à missa aos domingos, estar envolvido em projectos sociais, etc. – percebes o que ele diz e os sinais que te manda.
deus e filosofia não são contraditórios?
quis estudar filosofia porque o mundo do pensamento fascina-me. a organização da realidade, a maneira como vemos e entendemos o mundo, como nos vemos a nós próprios… mas a minha ideia desde o início foi fazer filosofia para depois ir fazer filmes. por isso, não acabei o curso e fui logo para a escola de cinema.
por que é músico e não realizador?
mas eu sou realizador. a música é só um dispositivo. a maneira como encaro o processo de fazer um filme é o mesmo que utilizo na música. um filme tem de ter sempre um fio condutor, um leitmotif que una tudo. os actores que se escolhem, os cenários, a fotografia, o som, os planos, tudo é pensado. a maneira como construo a música tem imenso a ver com isso. nada é por acaso. há uma visão primordial e está tudo ao serviço dela.
mas tem vontade de realizar um filme?
não tenho pensado muito nisso. estou bem na música e dá-me gozo estar inteiro naquilo que estou a fazer agora. claro que vou projectando muitas coisas porque não consigo ser de outra maneira, estou sempre a construir discos na minha cabeça, mas não me apetece, neste momento, dispersar deste ofício. ?