Bento XVI: O pastor (alemão) rodeado de lobos

Enfrentou escândalos sucessivos, dentro e fora dos muros do Vaticano. A renúncia deixou atónitos eclesiásticos e fiéis de todo o mundo. Dentro de duas semanas deixa para trás as intrigas dos palácios sagrados. O ortodoxo Joseph Ratzinger vai ter um lugar na História, nem que seja pela forma como abdicou.

o consistório de segunda-feira fora convocado para tratar de três canonizações. mas para surpresa dos cardeais bento xvi anunciou em latim que chegara o momento de abrir as portas ao sucessor. «estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de são pedro e anunciar o evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado». é uma saída de cena tão inesperada quanto espectacular na sua simplicidade. e que marca um momento que pode ser de viragem na história da santa sé.

à beira dos 86 anos, joseph ratzinger tomou uma decisão histórica ao resignar ao cargo de bispo de roma. e aqui a palavra aplica-se em todos os sentidos. renunciou (resignou) em resultado de se ter conformado (resignado) com o seu estado de saúde – soube-se entretanto que tem um pacemaker e que foi operado há três meses para substituir as baterias do aparelho. resignado também com as guerras internas, dos ‘corvos’ do vaticano e dos negócios obscuros a que não conseguiu pôr termo. e ao tomar esta raríssima decisão quebrou (resignou) a tradição papal de chegar ao fim da linha em funções.

resignado, mas não abatido. se atendermos ao seu último discurso antes deste, as pistas estavam lá. na sexta-feira, 8, bento xvi dirigiu-se aos alunos do seminário maior romano. e falando sem guião deixou uma mensagem de esperança mas doseada de realismo, rejeitando quer os «profetas da desgraça» que dizem que o cristianismo acabou, quer os «falsos optimistas» que dizem estar tudo bem. destacou a importância que a palavra ‘herança’ tem nos livros sagrados, para depois afirmar: «a herança é uma coisa do futuro e portanto esta palavra diz acima de tudo que, como cristãos, temos o futuro: o futuro é nosso, o futuro a deus pertence. assim, ao sermos cristãos, sabemos que o futuro é nosso».

a abdicação é uma herança que bento xvi deixa para o colégio cardinalício resolver. segundo o diário do vaticano, l’osservatore romano, o pontífice terá tomado a decisão de renunciar há quase um ano, após a viagem ao méxico e a cuba. nada que o teólogo não tivesse previsto. no livro luz do mundo, explicou que a resignação só deveria ocorrer «num momento de serenidade ou quando já não se pode mais». nesse livro-entrevista de peter seewald, editado em 2010, o sucessor de joão paulo ii especifica que se um papa não se encontrar física, mental ou espiritualmente capaz de cumprir as funções tem razões fundadas para abandonar a cadeira de pedro.

dois raios no mesmo sítio

ainda assim, e apesar de conhecerem as ideias do papa e decerto o agravamento das suas condições de saúde, os cardeais ficaram «num silêncio quase irreal», a avaliar pelas descrições do consistório. silêncio quebrado por fim por angelo sodano que, em nome de todos os cardeais, afirmou: «a sua mensagem comovida ressoou nesta sala como um raio em céu sereno. ouvimo-lo com sentido de trepidação, quase totalmente incrédulos». coincidência ou não, horas depois um raio atingiu a cúpula da basílica de são_pedro. mas o céu não estava sereno.

o teólogo ortodoxo

a dois meses de atingir oito anos de pontificado, bento xvi abandona o cargo que no campo espiritual fica marcado por uma postura mais ortodoxa da igreja. não alterou o rumo, uma vez que enquanto papa defendeu o que sempre escrevera antes: os valores da família tradicional, contra o aborto, o casamento gay e a eutanásia.

elegeu a «ditadura do relativismo» e o secularismo da sociedade como os grandes males da nossa época. deixou a sua marca em iniciativas como a beatificação do seu antecessor, a revogação da excomunhão do arcebispo britânico richard williamson, que nega o holocausto, a introdução de novos pecados mortais (manipulação genética, consumo de drogas, poluição e desigualdade social) ou a reintrodução da missa tridentina.
em 2006 incendiou os ânimos dos muçulmanos, no famoso discurso de ratisbona, ao citar o imperador bizantino manuel ii paleólogo: «mostra-me então o que maomé trouxe de novo e encontrarás apenas coisas más e desumanas».uacabou por pedir desculpas pela citação e tentou a aproximação com o islão em visitas à turquia e à jordânia.

oito anos de convulsão

em hora de despedidas, a comparação com o antecessor é natural. e o contraste é total. karol wojtyla recusou despir as vestes de joão paulo ii, bento xvi voltará a ser joseph ratzinger. o papa polaco teve um final de pontificado agonizante, cenário recusado pelo teólogo alemão, que assumiu o cargo com 78 anos (20 anos mais velho que joão paulo ii). se wojtyla foi o papa das multidões (e no meio delas quase perdeu a vida), ratzinger nunca escondeu ser pouco dado a esse papel de pop star e mais um homem que falava para dentro da igreja católica. durante os 26 anos à frente da santa sé, joão paulo ii passou ao largo dos escândalos, como o do mexicano marcial maciel, fundador da organização legionários de cristo, e pedófilo incorrigível. bento xvi enfrentou esses e muitos outros escândalos. maciel foi finalmente afastado em 2006.

o mandato do 265.º papa ficou marcado por muitas mais revelações sobre abusos de crianças por padres. primeiro na irlanda e nos estados unidos – aqui levando à falência de várias dioceses, após um rio de dólares em indemnizações –, depois um pouco por todo o mundo. perante os escândalos, mais de uma vez bento xvi pediu desculpa às vítimas. nada de que não desconfiasse antes de chegar ao topo da hierarquia da santa sé. enquanto prefeito da congregação para a doutrina da fé, ratzinger tinha a seu cargo a investigação dos casos de abusos sexuais. daí que em 2005, ainda cardeal, dissesse: «tanta sujidade na igreja e entre os que, pelo sacerdócio, deviam estar entregues ao redentor! quanta soberba!».

além dos escândalos de abuso sexual pelo mundo fora, no próprio vaticano surgiram notícias em catadupa nada abonatórias da santidade de muitos que lá trabalham.

mas o papa também se destacou pela inesperada adesão às novas tecnologias: a 12 de dezembro de 2012, o vaticano anunciou que bento xvi seria o primeiro pontífice a aderir ao twitter. os fãs queixam-se, porém, de a rede social ter sido negligenciada na hora do anúncio da resignação.

vaticano só em cash

a falta de transparência da banca é mais um caso. em 2010, rebentou o escândalo do ior, o banco do vaticano, suspeito de lavagem de dinheiro. no ano passado, o seu presidente, gotti tedeschi, foi demitido dias antes de uma avaliação do conselho da europa reprovar o banco do micro-estado em sete de 16 directivas preventivas à lavagem de dinheiro. no princípio deste ano, o banco de itália deu ordens para a suspensão do funcionamento das máquinas multibanco, de todos os pagamentos electrónicos e das vendas online no vaticano.

no ano passado, surgiu o escândalo que ficou conhecido como vatileaks. o jornalista gianluigi nuzzi revelou (primeiro na tv e depois no livro sua santidade) cartas e documentos retirados do escritório de bento xvi, alguns reveladores de negócios obscuros, outros das lutas de poder na santa sé. o mordomo foi o conveniente culpado: paolo gabriele foi detido e condenado em outubro a um ano e meio de prisão por furto agravado. na véspera de natal, bento xvi indultou gabriele, que foi expulso da_cidade-estado. do caso resultou claro que o mordomo era apenas um dos chamados ‘corvos’ do_vaticano, um grupo de trabalhadores que agiu com o objectivo de obrigar a uma «inevitável aceleração» das «acções de reforma iniciadas por ratzinger» contra a hipocrisia e a corrupção reinantes, como se lê no livro.

o secretário ambicioso

desse conjunto de documentos, resulta claro que uma das figuras centrais, para o bem e para o mal, é o secretário de estado, tarcisio bertone. o seu comportamento criou anticorpos e alguns cardeais chegaram a pedir a demissão dele ao papa.

bertone é uma eminência parda cuja ambição o levou a construir uma rede de alianças para manobrar alguns dos sectores-chave do vaticano, bem como para «estender mais influência sobre a cúria romana, até chegar aos grandes nomes do conclave, que no futuro, serão chamados a escolher o sucessor de bento xvi», escreve nuzzi.

essa oportunidade chegou. para já, como camerlengo (administrador do tesouro) será o chefe interino da igreja católica no período da sede vacante, isto é, entre as 20 horas de dia 28 e a entronização do futuro papa. que até pode ser o próprio bertone.

o conclave deve realizar-se em meados de março, pelo que, antes da páscoa, prevê a santa sé, deverá haver fumo branco.

tempo de apostas

a especulação começou poucas horas após a renúncia. as casas de apostas dão como favoritos o canadiano marc ouellet e o nigeriano francis arinze. mas a escolha é feita por 117 cardeais na capela sistina e não através de palpites online.

há quem, como o bispo de leiria-fátima, defenda um papa não europeu: «a europa hoje está a viver uma fase de cultura cansada, esgotada, que se reflecte na vivência do cristianismo. não se nota isso nem na áfrica nem na américa latina, onde sobressai uma frescura, um entusiasmo por viver a fé».

 de facto, na américa latina estão mais de 40% dos fiéis. mas são 19 os cardeais eleitores dessa região. já a europa tem 61 eleitores e 25% de crentes. mas os processos de escolha são bem mais complexos. e basta lembrar que em 2005 ninguém apostava em joseph ratzinger. o alemão não irá participar na escolha do sucessor e retirar-se-á para um mosteiro no vaticano. como a cidade só tem 44 hectares de área, estará muito perto do próximo papa.

cesar.avo@sol.pt