diante das ruínas da casa da ópera, reduzida a «uma espécie de fantasmagoria macabra, com as suas paredes descarnadas e os camarotes queimados erguendo-se a céu aberto, como que à espera de acolher um espectáculo sumptuoso que jamais voltaria a repetir-se», casanova comove-se com a extensão da catástrofe, que acredita ter sido capricho da natureza, mais do que manifestação divina. «nunca a transitoriedade da glória e dos feitos da espécie me pareceu tão evidente como diante deste cenário de horror», confessa o aventureiro italiano ao irmão, francesco casanova, numa de seis cartas da sua autoria datadas dessa altura e que compõem a nova ficção do escritor, gestor e jornalista antónio mega ferreira.
cartas de casanova, escrito em apenas três meses e meio, é um romance epistolar talentoso. nele se conjugam um conhecimento histórico e erudito do protagonista (histoire de ma vie, a autobiografia de casanova, foi base de inspiração e consulta), da cidade e da época (um hiato naquelas memórias), um domínio raro da língua (a inclusão de expressões francesas ou italianas adiciona, sem peso, cor e circunstância ao texto) e do género epistolar (brilhante o recurso às notas do tradutor-autor, espécie de rubrica-guião paralelo) e, por fim, ou sobretudo, uma muito imaginativa gestão global da narrativa. como num divertimento musical, mega ferreira apresenta-nos o herói em trânsito (acaba de escapar da prisão dei piombi, em veneza) e um conjunto circunscrito, mas muito representativo, de personagens (sobretudo históricas), para compor uma anotação original à margem de dois dos mais marcantes momentos e figuras do século xviii. ao jeito da época, prova, ele mesmo, como escritor, avoir de l’esprit jusqu’au bout des ongles.