Arménio Carlos: ‘Somos contra a violência’

Podia ter sido futebolista, mas uma zanga com o Belenenses fez com que entrasse na Carris como electricista. Aí descobriu os movimentos sindicais, aos quais está ligado desde os anos 80, e o PCP. Quando cumpre um ano enquanto secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos confessa que penalizou amigos e família, mas não consegue imaginar a…

chamar ‘escurinho’ a abebe selassié do fmi foi o pior momento neste primeiro ano como secretário-geral da cgtp?

pelo menos foi o que alguns primaram por polemizar. o tempo dirá quem defende os imigrantes e luta contra o racismo e a xenofobia. quem conhece a minha vida sabe que o racismo nunca esteve presente, pelo contrário.

como reagiram os seus camaradas? isso foi discutido numa reunião da direcção?

foi. com toda a sinceridade, eu é que coloquei a questão. e os meus camaradas, sem excepção, perceberam que o que estava em marcha era uma tentativa de desviar as atenções do essencial. a cgtp incomoda muita gente.

costuma usar muito o humor?

não utilizo muito o sentido de humor. mas na política, como sabemos, três ou quatro palavras podem ser mais eficazes que dez minutos de discurso.

neste caso teve o impacto errado…

é caso para dizer que chutei ao lado [risos]. passei a ter mais cuidado.

olhando para este primeiro ano: estava preparado?

preparado, estava. e com o apoio e solidariedade que se instalou na cgtp, foi fácil.

como pode dizer que foi fácil, quando os trabalhadores vivem o período mais complicado dos últimos 30 anos?

quando digo que foi relativamente fácil, é sobretudo pela coesão que conseguimos instalar com esta nova equipa dentro da central, o que ajudou a dar respostas imediatas. a actividade foi intensíssima neste ano.

o que espera da manifestação desta tarde?

o que vai acontecer no 2 de março é o que vai acontecer nos dias que o precedem e que lhe sucedem, nas várias iniciativas que a cgtp tem programadas. greves, concentrações, manifestações. o mais importante é que as pessoas participem e reclamem aquilo que pensam ser justo para o país. mal de nós quando as pessoas tiverem medo de exprimir opiniões.

nas manifestações tem havido um crescendo de agressividade. e numa das últimas greves houve pedras arremessadas a autocarros da carris. é esse o caminho?

não foram os trabalhadores, foi a população por onde os autocarros passavam que lançou algumas pedras. ainda assim, não se comparam com os piquetes anti-greve montados por algumas empresas e que, muitas vezes, têm a participação das próprias forças da autoridade. mas somos contra a violência. uma intervenção agressiva é contraproducente.

a agressividade contra miguel relvas também é contraproducente?

estamos a desviar as atenções do essencial. quando se faz do centro das atenções o que se passou com o ministro miguel relvas, perguntamos: ‘então e o milhão setecentos e quarenta e cinco mil pessoas que não têm emprego? e os estudantes?’. em janeiro, o reitor da universidade de aveiro disse-nos que havia quatro mil estudantes daquela universidade que não tinham pago as propinas por não terem dinheiro. isso é que nos preocupa.

nas manifestações encontramos hoje pessoas que nunca antes tinham saído à rua.

isso acontece porque muitas se sentem traídas. muitas votaram nos partidos deste governo. acreditaram na promessa do primeiro-ministro de que o primeiro pacote de austeridade seria suficiente.

teríamos ficado melhor com sócrates?

não. sócrates estava a fazer uma política de direita. os pec não foram mais do que o embrião do memorando. o pec1 também resolvia todos os problemas…

sócrates abriu a porta a passos coelho?

sem dúvida nenhuma. abriu de par em par.

o objectivo desta onda de contestação é derrubar o governo ou convencê-lo a ‘tomar juízo’?

[risos] este governo já não tem juízo. é um caso perdido. mas não é o derrube do governo pelo derrube que nos move. os problemas com que nos confrontamos começam com o memorando da troika e com a política de direita, que vem de trás.

o memorando é uma ‘almofada’ confortável para o governo?

pode ser, mas é uma desgraça para o país. isto é uma subserviência inadmissível. vítor gaspar vem dizer que a recessão afinal é de 2% e a ocde diz que o desemprego é de 17%. só por si isto é suficiente para parar e avaliar. a troika considerou positivas todas as seis avaliações, mas depois afinal são precisos mais sacrifícios. e ainda antes da 7.ª avaliação já diziam que é preciso mais austeridade. é brincar com a vida das pessoas.

qual foi o governo que lhe deu menos vontade de protestar?

nos últimos 30 anos não me lembro de nenhum. a partir de 1977 entrámos numa espiral de acerto de contas com os direitos conquistados na revolução de abril. direitos que também permitiram desenvolver o país. quando agora vemos identificar a competitividade das empresas com baixos salários, estamos a regressar a uma mentalidade pré-25 de abril.

como vê a posição de cavaco silva?

o presidente já se devia ter pronunciado. estamos em desacordo com muitas das suas posições, como no orçamento de estado [oe]. era a única entidade que tinha a possibilidade de solicitar a fiscalização preventiva ao tribunal constitucional. não o fez a pretexto de quê? de criar confiança? promulgou um oe que teve imediatamente dois pacotes complementares. o governo estava, desde logo, a declarar publicamente que não iria cumprir o oe. aprovar este orçamento é descredibilizar o país.

o presidente deve demitir o governo?

acho que este governo já perdeu a legitimidade para estar à frente do país.

além de líder da cgtp integra o comité central do pcp. o que prevalece?

é fácil: prevalecem os interesses dos trabalhadores. não há contradição.

se o pcp decide que se deve aumentar a conflitualidade sindical, chega à cgtp com a missão de aplicar essa decisão?

não. na cgtp interessam os trabalhadores. e não há contradição entre as linhas gerais das políticas do pcp e as linhas do projecto da cgtp. mas percebo que essa questão seja colocada. a central é um projecto unitário, composto por dirigentes sindicais oriundos de vários partidos e também ligados à igreja católica. ainda assim é fácil construir consensos: no acordo para a competitividade e emprego houve unanimidade de que não devia ser subscrito.

mas até que ponto é interessante para um sindicato ser visto como uma extensão de um partido político?

entendo que algumas pessoas pretendam ressuscitar a ideia do ‘braço armado’. mas quero já dizer que não tenho armas nem porte de arma. isso faz parte da contra-informação. à falta de argumentos para contestar o apoio cada vez mais visível dos trabalhadores à cgtp, há que ir ao baú das coisas velhas.

mas percebe que a ideia de colagem ao pcp existe, ou não?

não percebo. um comunista, se está à frente de uma central sindical, é mandado pelo pcp. mas um socialista, se está na direcção de outra central e faz parte da comissão política do ps, não é? esses não são teleguiados? não são controlados? não são o ‘braço armado’?

fala de joão proença.

não estamos a falar de nomes.

no último congresso, o pcp aprovou uma orientação política que identifica a ugt com um aliado, um instrumento, dos patrões. concorda?

é a posição do pcp, está definida. não me resta acrescentar nada. veja-se o conteúdo dos acordos que foram assinados. o acordo para a competitividade e o emprego foi uma machadada profunda nos direitos dos trabalhadores. transferiu dinheiro do trabalho para o capital e bloqueou a contratação colectiva. impediu a subida do salário mínimo, aumentou os dias de trabalho. e não teve nenhum efeito positivo na economia. é esta análise que conta.

a ugt é mais um inimigo, juntamente com o governo e os patrões, a combater?

não. não confundimos a árvore com a floresta. mas este é um bom acordo para os patrões, que nunca receberam tanto dinheiro nos últimos anos. não há garantias de que as políticas activas de emprego sirvam para assegurar postos de trabalho. diminui-se os salários e precariza-se o trabalho com o pretexto de criar emprego, mas onde estão as contrapartidas?

sentiu satisfação na última greve geral, que a ugt não apoiou, ao ver o sindicato de joão proença e o próprio proença, por obediência ao sindicato, a fazer greve?

não gosto de entrar nesse tipo de apreciações pessoais. há coisas mais importantes para os trabalhadores que entrar nesse tipo de querelas. agora, a greve de 14 de novembro, que era sectária, promovida pelos comunistas, teve uma das maiores adesões, e por coincidência a participação dos espanhóis e dos gregos e apoio pela europa fora. para quem está isolado não está nada mal.

mas as querelas existem. há um ano a cgtp disse que ia processar criminalmente o líder da ugt por difamação, por este ter dito que a cgtp o tinha incentivado a assinar o acordo de concertação. em que estado está o processo?

anunciámos, mas não avançámos. concluímos que não era desejável avançar. não era porque não se justificasse, mas porque estávamos a desviar as atenções do essencial. e também porque se ia arrastar tanto tempo nos tribunais que daí não resultaria, em tempo útil, nada que ajudasse à luta dos trabalhadores.

se joão proença o convidar para almoçar, aceita?

não temos problemas nenhuns. ainda há pouco tempo esteve cá a secretária-geral da confederação europeia de sindicatos para reuniões com o governo e instituições, e no intervalo dessas reuniões almoçámos os três tranquilamente. o facto de sermos frontais não nos impede de sermos pessoas civilizadas. isto não é um ringue de boxe.

e com carvalho da silva, costuma falar?

falo. ainda no sábado da manifestação [16 de fevereiro] ele tentou ligar-me, mas eu não tinha o telemóvel. depois liguei-lhe e ele estava na gulbenkian, acabámos por trocar sms. encontramo-nos de vez em quando, quando ele vem à cgtp.

em nenhum momento lhe pede conselhos ou tem vontade de lhe perguntar o que ele faria em determinada situação?

até agora nunca se colocou essa hipótese. ainda no outro dia falámos sobre o que cada um pensava em relação à situação do país, mas não pergunto o que ele acha que devo fazer.

sentiu o peso de suceder a um homem que liderou a cgtp durante 25 anos?

senti. o manuel esteve cá 25 anos, a central estava interligada com ele. e depois aparece aqui o electricista. mas vim para trabalhar, mais do que para estar preocupado com comparações. há tantos problemas para resolver que é nisso que temos de nos concentrar. não no que vão dizer sobre mim. se pensar nisso bloqueio. o raciocínio lógico tem-me acompanhado ao longo da vida e, como figura que representa a central, tenho de ter a preocupação que a mensagem seja clara e mobilizadora.

leia aqui segunda parte da entrevista: ‘sou uma pessoa fechada’.

 

manuel.a.magalhaes@sol.pt e raquel.carrilho@sol.pt