Cerveja reina entre os jovens

Na Casa de Pasto, um café no Campo Pequeno, em Lisboa, estrategicamente aberto nas imediações do Liceu Filipa de Lencastre, duas imperiais a 85 cêntimos são um chamariz irresistível para os adolescentes que vão ‘para os copos’ numa sexta-feira à noite.

«eu adoro beber», garante maria, de 16 anos, enquanto segura uma imperial num copo de 75 centilitros, à porta do café. «embebedo-me quase todas as noites que saio», conta ao sol. e quase sempre com cerveja, a bebida que na semana passada, em conselho de ministros, escapou à proibição de venda a menores de 18 anos, a par do vinho, sendo de venda livre a partir dos 16. «é muito mais barato. só bebo bebidas brancas quando são oferecidas», explica maria, enquanto se prepara para ir buscar mais uma imperial.

maria é apenas uma das dezenas de adolescentes que, todas as sextas-feiras e sábados à noite, se concentram em frente à casa de pasto. manuel, outro dos jovens que começam a noite no campo pequeno, também tem nas mãos um copo de cerveja e está ligeiramente embriagado. a noite ainda mal começou. apanhou a primeira bebedeira aos 14 anos: «foi por causa de um desgosto amoroso. estava em vilamoura e os meus primos levaram-me para um bar para eu afogar as mágoas».

bebida de iniciação

«a cerveja é uma bebida de iniciação, precisamente a que é mais consumida pelos mais novos por ser mais barata», alerta joão goulão, presidente do serviço de intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências (sicad).

beber cerveja aos fins-de-semana é, aliás, encarado por todos como algo rotineiro. o hábito de beber demasiado em determinados dias da semana é, aliás, uma das características que distinguem os mais jovens, «cujo perfil de consumo se aproximou nos últimos anos do dos países do norte da europa», sublinha o hepatologista rui tato marinho.

quanto mais cedo o fizer, pior para o corpo. «beber aos 16 é completamente diferente de beber aos 18», diz o médico. «o corpo está muito menos preparado e o risco de se desenvolver uma dependência aumenta para o dobro (de 15% para 30%)» – explica, acrescentando que «todos os médicos estão contra» a nova legislação do álcool aprovada na semana passada pelo governo. mas o alcoolismo não é tudo. há «as arritmias, a morte de neurónios, o aumento do risco de suicídio e de começar a fazer binje drinking (beber cinco shots de seguida com o único objectivo de ficar bêbado), fenómeno que tem aumentado os comas alcoólicos e que disparou nos últimos anos em portugal».

«o preço é demasiado alto», alerta o médico que acusa o executivo de ter «cedido aos lóbis ligados à indústria da cerveja».

«a nova lei é um retrocesso tremendo. tinha-se conseguido um consenso relativo, até com os agentes do sector, para subir a idade mínima do consumo de cerveja. não percebo o que aconteceu depois para o governo ter decidido mantê-la nos 16 anos», conta joão goulão.

a associação portuguesa dos produtores de cervejas (apcv) defende-se, garantindo que, caso tivesse avançado a proibição de venda de cerveja até aos 18 anos, a diminuição das vendas seria «reduzida». «haveria uma redução, mas seria pouco expressiva», diz francisco gírio, secretário-geral da associação.

a verdade é que nos últimos três anos, tem-se bebido cada vez menos cerveja no país. se em 2010 o consumo per capita atingia os 70 litros, em 2011 passou para os 53 litros e em 2012 para os 47 litros.

‘ninguém fiscaliza’

mais do que pela proibição, defende ainda o responsável, o problema passa pela «venda ilegal de álcool a menores de idade e pela falta de fiscalização» dos infractores.

os jovens com quem o sol falou confirmam a falta de fiscalização. no bairro alto, mafalda mostra o vinho que comprou no supermercado: «é mais barato do que num bar ou discoteca», conta a jovem de 20 anos. e o motivo que leva muitos adolescentes a preferir comprar no supermercado é precisamente o facto de raramente lhes ser pedida a identificação, garantem ao sol. «já comprei várias vezes e só me pediram o b.i. numa», conta mafalda, que fez as misturas em casa. «é vinho com seven up. deitei-as para uma garrafa de plástico e trouxe».

ali, ninguém confirma a idade que as suas amigas têm. uma delas, carolina, sabe que bebe demasiado. bebe até ficar embriagada: «esticamos sempre um bocado. incentivamo-nos umas às outras, até que chega a um ponto em que achamos que não estamos bêbadas, mas estamos».

no campo pequeno, bernardo é outro caso de falta de controlo por adultos. começou a beber aos 14 e o consumo, sobretudo de cerveja, tem vindo a aumentar desde aí: «tenho dias em que começo a beber imperiais às duas da tarde».

as noites destes jovens atingem o clímax quando ficam bêbados: «já perdi a conta à quantidade de bebedeiras que apanhei», conta bernardo, a rir-se.

ainda assim, todos reconhecem que os jovens bebem demais, especialmente os mais novos: «estão na idade de experimentar e não têm controlo sobre o que bebem», afirma bernardo, referindo-se aos adolescentes que são apenas um ano mais novos que ele. «bebem para depois irem contar aos amigos e para se sentirem integrados», explica francisco, de 17 anos, um dos poucos que dizem não beber muito porque é desportista. mas estes adolescentes não se revêem neste comportamento: «nós somos mais velhos, já temos mais responsabilidades e, portanto, não nos comportamos assim», reforça bernardo.

as bebedeiras em grupo são uma espécie de rituais de passagem, que reforçam os laços entre os jovens. «quando bebemos, ficamos mais desinibidas e acontecem coisas engraçadas», diz carolina, esclarecendo que costuma beber vinho e cerveja porque isso «dá uma bebedeira mais leve e é mais barato».

só no ano passado, a central de cervejas, dona da sagres, vendeu 230 milhões de litros de cerveja, mais de 60% fora de casa.

segundo nuno pinto de magalhães, a distinção entre bebidas fermentadas (como a cerveja e o vinho) e as destiladas é vista pela empresa como «pertinente, devido à naturalidade dos produtos e ao facto de conterem um menor teor alcoólico». além disso, defende, o governo terá tido em conta «o impacto económico da actividade no país».

sonia.balasteiro@sol.pt e rita.porto@sol.pt