«stars are never sleeping», anuncia david bowie na canção ‘the stars (are out tonight)’, o segundo single retirado de the next day. reflectir sobre o culto das celebridades sempre foi uma das obsessões de bowie, mas reforçar esse interesse no novo álbum, nas lojas segunda-feira, surge como uma lembrança de que, embora tenha ficado dez anos sem editar, ele sempre esteve aqui. silencioso, mas atento e observador, a confirmar que «as estrelas nunca estão a dormir».
o motivo para a ausência concretizou-se em 2004 quando, depois de um concerto na alemanha, sofreu um ataque cardíaco. o processo de hibernação deu-se logo de seguida, embora com algumas interrupções, quando apareceu, nos anos seguintes, ao lado dos arcade fire, david gilmour e alicia keys. mas depois de novembro de 2006, nada se soube dele. as especulações sobre o seu, suposto, débil estado de saúde tornaram-se regulares e nada fazia prever o que aconteceu a 8 de janeiro, dia em que completou 66 anos, e apresentou ao mundo ‘where are we now?’, o primeiro tema retirado de the next day.
construído em absoluto secretismo, o álbum levou dois anos a ganhar forma. segundo tony visconti, que produziu o registo, o projecto arrancou apenas com três pessoas – ele e dois colaboradores frequentes de bowie –, mas o autor de ziggy stardust exigiu selar a parceria com contratos de confidencialidade. ao guardian, visconti conta que ficou «algo ofendido» com o documento, mas rapidamente se provou que esta precaução tinha razão de ser. ao fim de um dia de gravações, foram obrigados a mudar de estúdio porque alguém não aguentou guardar tamanho segredo e o produtor recebeu um telefonema de um jornalista a perguntar-lhe sobre o próximo disco de bowie. felizmente para as expectativas do músico – que, inclusive, só contou ao presidente da sony a existência de novo trabalho três meses antes de o anunciar ao mundo –, o percalço terminou aí. a mudança de estúdio deu-lhe a privacidade que procurava e, durante dois anos, conseguiu trabalhar no novo álbum sem ninguém suspeitar.
esta facilidade em se camuflar quando deseja ou, inversamente, fazer o maior estardalhaço do mundo sempre foi o seu modus operandi. nada é ao acaso em bowie. tudo é pensado ao pormenor e a década de 70 mostra bem como ele idealizou, construiu e eternizou a mais marcante visão do que é a cultura pop, e que perdura até aos dias de hoje.
a estratégia que o tornou um dos ícones mais determinantes da história da música começou em 1970, quando lançou the man who sold the world – antes já tinha editado o disco de estreia homónimo (1967) e space oddity (1969), mas nessa altura ainda andava à procura de uma ideia conceptual. encontrou-a ao lado da americana angela barnett, a primeira mulher, com quem se casou em 1970. segundo paul trynka, jornalista inglês e autor de starman, a última biografia editada sobre o músico, ela «tornou-se a força dominante» na vida de bowie e foi ela que o incentivou a adoptar uma imagem andrógina. «angie foi o catalisador do seu lado visual. provavelmente, sem ela, ele não teria ido tão longe», diz o biógrafo.
o plano de acção começa então com the man who sold the world, onde aparece com um vestido na capa, e, um ano depois, segue-se hunky dory, que abre com ‘changes’, a sua declaração de intenções: uma ode à constante reinvenção. e foi exactamente isso que fez até 1980, naquele que é considerado o seu último grande trabalho, scary monsters… and super creeps. a cada novo disco, nova personagem. e a constante mutação – que será analisada à lupa na exposição david bowie is, que se inaugura no victoria&albert museum, em londres, no dia 23 _– valeu-lhe a alcunha de camaleão.
sob esse cognome, em 1972 inventou ziggy stardust, o cantor de glam rock assumidamente gay. seguiu-se aladdin sane, uma extensão de ziggy, e depois a fantasia diamond dogs, inspirada no romance 1984, de george orwell. com a mudança para os estados unidos reinventa-se na soul. mas the thin white duke, a personagem de young americans, não corresponde à pureza do estado de espírito que a soul apregoa. bowie atravessa a fase mais negra a nível pessoal, com a violenta dependência de cocaína e a adoração pelas ideologias fascistas a dominar a sua vida.
o reencontro com a sua faceta criativa mais libertadora surge com a mudança para berlim, onde vive com iggy pop, e onde, pela primeira vez nessa década, permite-se não encarnar uma personagem. o glaciar low e o épico heroes – dois dos registos que ainda hoje definem o que se faz na pop – surgem nesta fase, que bowie quis revisitar em ‘where are we now?’, com a letra a falar dessas vivências na capital alemã. mas, ao contrário do que se possa pensar, não é este olhar nostálgico que define o novo the next day. há aqui uma vitalidade que não ouvimos nos anteriores heathen ou reality. bowie entende como ninguém o espírito de cada época e é a angústia do presente que percorre o novo disco, um registo denso, desafiador, perspicaz, com sonoridades diversas, que vão desde baladas introspectivas a canções rock musculadas, de voz e guitarras bem audíveis.
as letras precisam de ser ouvidas várias vezes para serem totalmente entendidas. mas a ideia mais evidente é a de que o artista que há em bowie não adormeceu. inteligente como sempre, reviu o passado, tomou notas e analisou o presente para se projectar no futuro. até porque, da mesma maneira que bowie nunca teve um antecessor, ao longo destes quase 50 anos de carreira também ainda não apareceu ninguém para o substituir. provavelmente nunca acontecerá. e é por isso, como diz trynka ao guardian, que the next day «não é só um disco novo» de bowie. «é a mais recente obra da pessoa que definiu a nossa cultura pop».