‘Cavaco não foi eleito para ser um vaso a adornar um armário’

Fernando Nobre, ex-adversário de Cavaco, considera que o Presidente deve ser o intérprete da vontade e do sofrimento do povo e não pode ficar fechado no Palácio de Belém.

como viu o prefácio do novo livro do presidente da república (pr), ao fim de alguns meses de silêncio?

é um documento para memória futura com o objectivo de se autojustificar e de se auto-elogiar. mas deixou-me extremamente perplexo, quando falou na crise anunciada. há dois pontos aterradores. diz que entre 2005 e 2010 (e foi eleito pr em 2006) viveu-se uma acumulação insustentável do défice e do endividamento externo. pergunto-me: como perito de finanças, o que é que esteve a fazer em belém? como permitiu que que esta catástrofe se avolumasse? o primeiro-ministro e o pr tiveram responsabilidades enormes, um por ter poder executivo, outro por estar em belém a apreciar o descalabro das contas públicas de forma assustadora. e agora descarta completamente as suas responsabilidades como presidente durante o seu primeiro mandato! tem de haver responsabilidades. ou a culpa vai morrer solteira em portugal?

cavaco diz que alertou e que a culpa foi do governo de sócrates.

devia ter feito muito mais. se alertou, ninguém o ouviu. e um pr, o garante do normal funcionamento das instituições, que não é ouvido por um governo ou por um povo não sei o que está a fazer. ou tem uma voz inaudível ou sussurra ou não é capaz de dar um murro na mesa que seja orientador para dizer: ‘assim não, assim estamos a caminho do precipício e eu não permito!’.

uma crítica que tem sido feita ao pr é que não anda pelo país e não fala com as pessoas.

numa fase como esta, o pr não tem de ter medo de ir à rua e contactar com o povo que o elegeu. o_presidente é o único órgão de soberania eleito unipessoalmente, daí advém-lhe uma autoridade incontestável e, por isso, tem o direito e o dever de dar uma explicação aos portugueses. não fica bem fechar-se em belém. não foi para isso que o povo o elegeu. num momento de crise aguda, de contestação, incentivada ou não por alguns partidos ou grupos de cidadãos, ele tem de ir para junto das pessoas, ouvir e dialogar, para lhes transmitir que está à escuta do povo português. o pr não foi eleito por uma junta cooperativa que o colocou ali para que ficasse quieto e fosse um vaso a adornar um armário. foi eleito para ser um intérprete da vontade, do sentir e do sofrimento do povo. depois cabe-lhe catalisar essas conversas e passar a quem de direito: sistema financeiro, governo, sociedade civil, parlamento, o sentimento que pulsa junto do povo.

em alturas de crise, o pr não deve ser discreto e exercer a sua magistratura de influência, como cavaco defende?

as conversas com o primeiro-ministro têm de ficar no recato. a magistratura de influência deve ser sigilosa. mas a questão é: qual é a credibilidade de escuta reservada a conselhos vindos de alguém que, enquanto primeiro-ministro, desestruturou o sector primário e secundário, as pescas, a agricultura, o sector metalomecânico? neste momento de depauperização intensa da sociedade portuguesa, seria muito mais fácil alavancar projectos importantes se há 20 anos se tivessem privilegiado os sectores produtivos nacionais e se se tivessem feito menos auto-estradas.

mostra-se preocupado com a situação do país. continua a apoiar a política do governo e do psd, partido pelo qual foi eleito deputado?

o governo herdou uma situação catastrófica, de falência do estado, um país sob tutela da troika. é evidente que não concordo com tudo o que o governo fez. mas isso digo-o ao meu amigo dr. pedro passos coelho, com quem tenho a honra de às vezes falar.

mas a pobreza está a aumentar em portugal.

com certeza que sim. isso é inquestionável.

acredita na fórmula deste governo e da troika?

estou esperançoso que o dr. passos coelho, em cuja seriedade pessoal confio e respeito, venha a conseguir restabelecer a credibilidade do estado e a criar o mais rapidamente possível condições para que os nossos jovens já não tenham mais que emigrar; que se aumentem as pensões mínimas e o salário mínimo e que a pobreza endémica em portugal cesse. mas tal só vai ser possível se se fizerem reformas estruturais nas áreas da saúde, educação e justiça, a reforma administrativa do estado, nas empresas públicas, que são um descalabro inadmissível. é preciso uma mudança de paradigma. é a única saída. mas isto não se faz de um dia para o outro. estamos num período muito triste da nação. e são tantos os exemplos que destroem o nosso ânimo: bpn, bpp, as reformas bilionárias do bcp, em que um dos presidentes veio agora queixar-se de ter apenas 70 mil euros de reforma mensais como se fosse o paradigma do reformado apertado. temos um milhão de reformados com 200 euros por mês, o que é uma vergonha!

helena.pereira@sol.pt