João Rocha

O Kremlin estava a funcionar há pouco tempo e em Lisboa existiam apenas meia dúzia de discotecas. Muito do movimento acontecia nas Escadinhas da Praia e um então jovem secretário de Estado do Ambiente começava a notabilizar-se na sua cruzada contra o tabaco e o ruído, leia-se discotecas.

numa bela noite, macário correia e um número considerável de fiscais do ruído e polícias, deslocaram-se ao kremlin e deram ordem de encerramento. os proprietários, os irmãos rocha, não eram e não são muito dados a falar para jornais, mas era preciso ouvir a sua versão. eu dava os primeiros passos na escrita jornalística e fui destacado para fazer o artigo. fui então ter com o pai dos donos, que me recebeu na sua casa na lapa. a seu lado estavam, salvo erro, três funcionários: eugénio, o saudoso picado e luís amaral, a quem pedia para arranjar alguma coisa que eu pudesse beber. a tarde estava quente e a cerveja refrescava a conversa. joão rocha, pai, não conseguia aceitar que tivessem fechado o brinquedo dos filhos e clamava que a decisão de encerramento se devia a «razões políticas e pessoais». a conversa decorreu na discoteca existente no interior da casa da lapa onde os filhos fizeram as suas primeiras festas e ganharam gosto pela causa. depois desse artigo acabámos por nos encontrar diversas vezes para falar de outros assuntos e almoçámos algumas vezes. recordo-me que, mesmo nos seus restaurantes, gostava de dar uma gratificação generosa aos empregados, dobrando a nota várias vezes para que ninguém reparasse no valor.

quando uns anos depois os seus filhos decidiram abrir uma discoteca em vilamoura, joão rocha convidou-me para ir ver o andamento das obras, onde quase exercia o papel de chefe das mesmas. tinha um entusiasmo fora do normal para a sua idade. adorava participar na elaboração dos projectos, mas depois eram os filhos que tratavam do assunto. sempre que me encontrava nalgum acontecimento especial, tentava convencer-me das maravilhas da medicina oriental e como havia receitas quase milagrosas para o emagrecimento.

criámos uma relação de empatia e, apesar de não nos vermos muito, sempre que tal acontecia ele fazia-me rir. «oiça lá, acha normal que…», era uma frase que dizia muitas vezes. na semana passada fui surpreendido pela notícia da sua morte. não achei normal… l

vitor.rainho@sol.pt