desde canção ao lado, de 2008, até este mundo pequenino só passaram cinco anos, mas mudou muita coisa nas vossas vidas. deixaram os empregos fixos, viajam pelo mundo, vivem da vossa música. hoje são uma banda diferente?
ana bacalhau (ab) – acho que sim. somos mais experientes e temos uma maturidade maior, enquanto músicos e pessoas. isso reflecte-se na música que fazemos e, neste álbum, houve essa vontade de arriscar. com a estrada, as experiências que tivemos, entre elas com a orquestra metropolitana de lisboa, as amizades que fizemos, etc., percebemos que cabiam coisas na nossa música que no início nem imaginávamos.
que tipo de coisas?
ab – a nossa música é local porque é cantada em português, tem referências do nosso quotidiano e, em termos sonoros, está ligada à raiz portuguesa. mas o formato canção que trabalhamos é universal e, por isso, é natural sofrer influências das viagens que fazemos. o som de alguns instrumentos que fomos encontrando, como o erhu em macau, ou o harmónio em goa, são exemplos das coisas que quisemos para este disco. mesmo não tendo sido usados directamente, aquelas sonoridades inspiraram-nos.
pedro da silva martins (psm) – este álbum viveu muito de encontrar nas canções pontes para sonoridades de sítios que visitámos. por exemplo, estivemos na córsega e ouvimos o canto córsego, que é fantástico. em goa ouvimos o mandó, uma música que os portugueses levaram para lá e eles adaptaram ao cancioneiro goês. quisemos trazer essas vivências, mas também ao nível do conteúdo. ‘medo de mim’, por exemplo, é inspirada numa história que vivemos em joanesburgo [áfrica do sul]. queríamos andar na rua, mas estávamos expressamente proibidos de sair do hotel. lá conseguimos forçar uma saída, porque queríamos sentir a cidade, mas ao sairmos de uma loja, a nossa road manager foi abordada por uma pessoa, que, por alguma razão, veio a correr atrás dela. aflitos, dissemos-lhe logo para ela se fechar na carrinha, mas afinal era só uma rapariga que vinha entregar uma nota que ela tinha deixado cair. o medo provoca muitos enganos e a canção é baseada nesta história.
a dinâmica de banda também mudou?
psm – estamos mais entrosados. a linguagem da banda tornou-se mais sólida e reagimos imediatamente às propostas que surgem. ao vivo, por exemplo, estamos muito ensaiados, há canções que já tocámos mais de 500 vezes, mas estivemos agora na eslovénia e foi um concerto inesperado porque houve alguma improvisação e a capacidade de resposta foi grande. como nos conhecemos há muito, esse lado de nos surpreendermos é um ingrediente saudável.
a deolinda era uma menina da província, que vivia no subúrbio de lisboa. com dois selos e um carimbo ganhou arejo e, agora, há todo um mundo novo. o sujeito ainda é o mesmo?
psm – na essência sim, sobretudo o olhar: continua atento, perspicaz, a questionar a sociedade. o cenário é que mudou, mas também estamos a viver um país diferente do de 2008, quando a deolinda apareceu.
mas em vez de se tornar pessimista, continua estoicamente alegre.
ab – a deolinda é um reflexo nosso e nós somos assim. não somos pessimistas, apesar de vermos as coisas más e as retratarmos nas canções.
fazer canções positivas é reagir ao negativismo dos tempos actuais?
psm – claro! não nos deixamos vencer…
ab – …daí este disco ter cor e vibração.
depois do ‘parva que sou’ esperou-se que as vossas canções se tornassem mais políticas. não quiseram ir por aí?
psm – o nosso papel é fazer música e na altura do ‘parva que sou’ aquilo que se pretendia era que tomássemos um discurso de acção que não é o nosso. nós somos músicos e fazemos música. e essa canção não é de temática inédita no repertório da deolinda. é uma canção de consciência social e que aponta um problema, mas temos outras canções, em primeiros álbuns, com a mesma raiz. se calhar, se tivéssemos estreado agora o ‘movimento perpétuo associativo’ a canção teria o mesmo impacto.
não vos interessa o simbolismo político que o ‘grândola, vila morena’ tem?
psm – tal como nós, o zeca fazia música e há entrevistas pós-‘grândola vila morena’ em que ele estava tão abananado como nós após termos estreado o ‘parva que sou’. perguntavam-lhe ‘vai voltar a fazer hinos?’ e ele não sabia responder. as pessoas é que fazem os hinos, não são os músicos.
ab – quando algo não está bem, a arte é a primeira a dar sinais, seja através da música, da literatura, do cinema ou da pintura. historicamente há muitos exemplos disso. esse é um dos papéis da arte, ter um olhar, individual ou de grupo, sobre a sociedade. mas são as pessoas que fazem as suas interpretações. como conhecem o nosso trabalho, é justo esperarem canções de consciência, mas nós somos só músicos.
então há uma vontade deliberada de não se envolverem a nível político?
psm – de certa maneira estamos envolvidos. mesmo não querendo, fazemos política. a não acção é uma acção.
ab – é uma questão de linguagem e nós não dominamos, nem queremos, a linguagem política. dominamos a musical e só deus sabe o trabalho que isso deu…
psm – se fizéssemos outra coisa que não música, estávamos a fazer ruído e isso não nos interessa.
os músicos não podem ser heróis?
ab – têm de ser pessoas. os heróis vêem o mundo lá de cima. eu prefiro estar no meio das pessoas. na nossa profissão isso é muito mais prolífero.
psm – e a mim apraz-me muito mais fazer com que as pessoas se sintam heróis, em vez de ser um de nós. até porque isto não vive só com heroísmo, não se joga só com um bom jogador.
ab – tem de se deixar de procurar só uma pessoa, o tal que vem e resolve. temos de nos convencer que o herói é colectivo e não individual.
ao terceiro disco, são uma das bandas mais conhecidas do país. o sucesso alterou a vossa vida pessoal?
psm – nada. ainda esta semana aconteceu-nos uma óptima. saímos de uma entrevista e um senhor vem ter connosco e começa a elogiar o jornalista [joão miguel tavares]. dá-lhe os parabéns pelo governo sombra [tsf e tvi] e, depois, vira-se para nós e diz ‘parabéns à equipa também’… ele nem nos reconheceu e nós adoramos isso.
e no estrangeiro, onde têm tocado imenso, sentem que já são conhecidos?
ab – é um processo lento, temos de ir muitas vezes aos mesmos locais e defender a nossa música. até agora temos sentido que as pessoas nos aceitam. já há inclusive um clube de fãs em itália e outro no brasil.
psm – também temos tido a oportunidade de estar com o público depois dos concertos e percebemos que a língua não é o mais importante, mas sim a sonoridade. temos conhecido pessoas que têm uma verdadeira paixão pela cultura portuguesa. fico espantado com isso, porque são pessoas que vão a todos os concertos, que querem conversar e pedem referências de outros artistas para além do fado… perceber que a nossa cultura é tão valiosa é uma felicidade.
conquistaram um público vasto, de todas as classes sociais. mas o novo disco tem mais camadas e é mais requintado em termos sonoros. não têm medo de que alguns fãs fiquem pelo caminho?
psm – é uma proposta, vamos ver como resulta. mas a deolinda sempre foi uma proposta arriscada, tanto que no início nós nem sequer acertámos no single. apostamos em ‘fado toninho’ e o que se afirmou foi o ‘fon-fon-fon’. falou em classes sociais, mas também notamos essa diversidade a nível etário. somos surpreendidos quando aparece um metaleiro ou um punk. essa transversalidade é o que significa ser verdadeiramente popular. e a deolinda é um campo de experimentação do que é fazer canção hoje em portugal.
num país que está a viver um momento musical muito fértil, com o aparecimento de uma nova geração de músicos.
psm – é, de facto, um momento muito rico e é um privilégio estar a vivê-lo na primeira pessoa. aqui há uns meses, a deolinda fez anos e convidámos todos os nossos amigos musicais para um jantar, à volta de pataniscas, na casa dos meus pais, no magoito. juntámos ali gente como os virgem suta, paulo furtado, rita redshoes, norberto lobo, mitó [naifa], luísa sobral, pedro gonçalves [dead combo], entre outros, e cada um ia trazendo canções, algumas delas ainda por lançar, e pedindo opiniões. estão-se a gerar encontros muitos engraçados e acho que as parcerias vão-se tornar frequentes. e depois há uma competição saudável entre todos, com a malta a espicaçar-se e a trocar galhardetes do tipo: ‘tenho aqui uma melodia que não consigo resolver, vê lá se consegues fazer uma canção com isto’. este bom momento já começou a dar frutos – o disco da ana moura [desfado] junta muita gente e deixa pistas para o futuro – e estas colaborações elevam a qualidade da música feita cá.
ab – aqui há uns meses também houve um jantar épico, organizado pela luísa sobral, só de mulheres. ao todo, éramos 20 cantoras. foi muito bonito.
o pedro ganhou recentemente o prémio da spa para melhor canção de 2012, com ‘desfado’, escrita para ana moura. a par disso tornou-se comum ouvir os seus pares falarem de si como um dos melhores compositores actuais. é fácil ficar inchado de vaidade com estes elogios?
psm – fico muito feliz por ser referenciado pelos meus pares mas, sem falsas modéstias, não sou nada vaidoso. se fosse não conseguia fazer mais nada. sinto o que faço como resultado do meu trabalho. e dá mesmo muito trabalho fazer canções. por saber isso, admiro muita gente, como a márcia, a luísa sobral, o samuel úria– que tem um disco novo [o grande medo do pequeno mundo] fantástico –, o antónio zambujo, um melodista extraordinário. e há gente nova muito boa a aparecer. no outro dia vi os capitão fausto ao vivo e fiquei de boca aberta. eles são tão miúdos [o mais velho tem 23 anos] e são fora-de-série.
como descobriu a escrita?
psm – comecei muito novo a inventar canções e, geralmente, eram a denegrir o meu irmão [luís josé martins, o outro guitarrista da banda]. devia ter uns seis anos e lembro-me de já procurar escrever provocações em verso. esse gosto pela escrita nunca me abandonou e passei a adolescência toda a escrever uma poesia muito duvidosa. quando apareceu uma guitarra lá em casa, enquanto a abordagem do luís foi ‘como é que vou tirar um som bonito e tocar aquilo que é tão difícil’, a minha foi ‘como vou fazer uma canção’. nascemos com direcções já pré-estabelecidas.
o humor que usa na escrita vem de família?
psm – na nossa família sempre houve um lado espirituoso muito forte e muitas tiradas de improvisação. o meu pai é muito talentoso nisso. lembro-me de ele fazer canções e rimas assim do nada e eu ficava ‘como é que ele fez isto?’. acho que isso me espicaçou a tentar fazer o mesmo. depois, na família sempre houve quem cantasse fado. somos muito lisboetas, os meus tios faziam quadras para os santos populares e eu ficava fascinado com os versos que eles inventavam. como somos uma família grande, também se organizavam muitas festas e, dependendo do grau de ‘alegria’, elas terminavam com cantorias em francês, mesmo sem se saber falar francês.
ab – mas isso era do vinho, que devia ter uma casta francesa… [risos]
psm – crescemos com esse lado animado. um primo nosso tinha uma casa com uma sala grande, a que nós chamávamos cabaret da coxa, e o pessoal ia para lá fazer canções, tocar em conjunto, passar serões divertidos. sem dúvida que esse lado influenciou.
a matriz familiar está muito presente, até porque na banda há um casal, dois irmãos e três primos. nos deolinda são familiares ou sócios?
psm – como vivemos disto, temos de encarar a deolinda numa lógica de negócio, mas acho que quando estamos no palco somos músicos, quando temos de falar e tratar de coisas mais burocráticas somos sócios e quando estamos no disparate somos família.
ab – uma empresa familiar tem essas duas coisas: é empresa, mas é familiar. essa vertente dupla existe, mas somos organizados e isso permite-nos perceber quando temos de agir como sócios e quando podemos ser só família.