Livro: Clarice Lispector humanizada

Entre Agosto de 1967 e Dezembro de 1973, ou seja, entre os 47 e os 53 anos (quatro antes de morrer), Clarice Lispector publica uma crónica por semana no Jornal do Brasil. «Para mim escrever é procurar», esclarece. Neste caso, a escrita é uma busca quotidiana de impressões e sensações, retratos presentes ou passados, do…

nesta altura, já ocorreu o incêndio que a encheu de cicatrizes e quase lhe inutilizou a mão direita (fala disso). clarice já perdeu a beleza de outrora e já escreveu «nove livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe». faz traduções e, desde 1968, publica entrevistas, também intimistas, na revista manchete.

a escrita de crónicas abre um clarão na solidão, na ansiedade e na depressão que a vão minando e a levam a consultar um psicanalista com regularidade. afinal, ela é paga para ser «mais pessoal» e «escrever mais leve» e essa é a sua principal fonte de rendimento. graças às crónicas, clarice, habitualmente de trato social difícil, sente-se tão perto e tão amada pelos leitores que lhes promete «que ser[á] mais feliz e assim os far[á], pelo menos por um instante mais felizes». diz-lhes «eu vos amo» e conquista o maior público que teve em vida.

clarice escreve «para os outros» e dá conta do dia-a-dia em textos que são memória, divagação, anotação, reflexão (várias sobre o trabalho da crónica), conversa, desabafo ou ficção curta (notáveis os textos sobre o ovo, o bobo ou os bichos). como cronista, ela é doce, áspera, depressiva ou irónica, sempre irreverente e original. a descoberta do mundo, espécie de diário em fragmentos, permite-nos a descoberta, por detrás da esfinge, de uma clarice humanizada. ainda assim, ela declara, e com razão: «recuso-me a ser um facto consumado».

online@sol.pt