O regresso de Anamar, finalmente inteira

Há dois anos e meio, quando estava prestes a completar 50 anos, Anamar decidiu fazer uma grande festa de aniversário. Pouco dada a exteriorizações deste tipo no passado, desta vez abriu a excepção de assinalar a data por sentir, de há uns anos para cá, «uma grande disponibilidade para o presente». O argumento pode parecer…

para agilizar a organização da festa, e recuperar contactos perdidos, anamar criou uma conta no facebook e, durante dois meses, preparou a celebração. «viveram-se episódios fabulosos de reconciliação e reencontros», diz, deixando, porém, os restantes detalhes à imaginação de cada um. mas o pormenor que resultou indirectamente dessa comemoração e que partilha agora com toda a gente é outro: chama-se anamar e é o seu novo disco, que sai esta semana.

voltar de corpo inteiro

é verdade que, depois da década de 80, altura em que editou regularmente, já assistimos a vários regressos da cantora: m, de 1997, e transfado, de 2004 (para trás ficaram amar por amar e almanava, ambos de 1987, e feiabonita, de 1989). mas agora, anamar garante que é diferente. que é um regresso total. «embora tenha gostado muito dos últimos dois álbuns, eles foram sempre trabalhos pontuais. sabia que não voltava de corpo inteiro à música porque tinha outras responsabilidades. por isso, agora não é tanto o regresso de há dez anos, mas sim o regresso de há muito mais tempo».

essa certeza resultou, lá está, da tal festa em que celebrou meio século de vida. a decisão de fazer uma pausa na música aconteceu há 23 anos, quando foi mãe de gémeos. mas anamar diz que sempre soube que haveria de chegar a altura de voltar «com tudo». «só não sabia qual seria o momento certo, mas estava absolutamente disponível para que a vida me dissesse».

essa crença, garante, fá-la «olhar à volta e perceber os sinais» que a vida transmite e, ao criar a conta no facebook, começou a ser pressionada pelos fãs para voltar. especialmente em novembro de 2012, quando se assinalou 25 anos do seu primeiro concerto no coliseu dos recreios, em lisboa, a propósito do primeiro lp. «esse espectáculo teve um impacto bastante grande e percebi que as pessoas tem-no muito vivo na memória», comenta, relevando que os fãs começaram a publicar músicas antigas no facebook e a reclamar fotografias e outras recordações de anamar. «não sendo uma pessoa nostálgica, nunca alimentei esse culto, mas comecei a sentir que se calhar era mesmo a vida a dizer-me: ‘olha ana, decide-te lá. é agora ou não é?’». o gatilho estava destravado.

identidade lusitana

anamar – onde se revisita composições antigas (como ‘roda’), mostra canções novas, reúne autores do fado e da pop – nas palavras da própria, é um disco «latino transantlântico». «há ambientes da américa do sul, com batidas muito envolventes, como a intensidade do tango, mas também da américa do norte, que nos transporta para o horizonte dos cowboys e do blues, das grandes estradas sem fim. também há europa e o berço cultural de paris e o norte de áfrica, com o balanço tribal dos tambores. mas quando abordo uma criação musical, o factor mais marcante é sempre a identidade lusitana, a transcendência da alma que somos. sai-me da voz».

esta identidade lusitana, «absolutamente soberana» em tudo o que anamar faz, vai estar em destaque no teatro são luiz no dia 2 de maio, para o concerto de apresentação do novo disco e terá um convidado especial: o legendary tiger man, de paulo furtado. «o paulo tem o horizonte sem fim dos cowboys. e como este disco é música dos portos, é coast to coast, ele será a ponte nesta viagem», explica, imprimindo uma paixão enorme, própria de quem faz o que mais gosta, em cada palavra.

a opção pelo título homónimo ao fim de 30 anos de edição (mesmo com todas as interrupções pelo meio), sugere isso mesmo: um estado de alma pleno. «genericamente há uma simplicidade que subjaz a este trabalho que não requer mais rótulo nenhum. aqui estou para o que der e vier e estou inteira», sublinha, enquanto acende mais um cigarro. e ao fim de uma hora de conversa é inevitável reparar que a pose de femme fatale cinematográfica de há anos na cantora – além do cigarro na ponta dos dedos, o cabelo continua comprido e volumoso, os olhos extremamente bem delineados a sombra negra e a enorme sensualidade que usa a comunicar, verbal e gestualmente –, está intacta. há uma familiaridade que nos aproxima dela. mesmo para quem nasceu dos anos 80 para a frente e só teve vislumbres da sua carreira. nem parece que passaram quase 30 anos.

alexandra.ho@sol.pt