«desde que cheguei aos cinquenta anos, passei a fazer e a dizer tudo o que quero», disse mísia, num palco de bogotá, no passado sábado.
entendo-a muito bem: o problema é que já passámos mais de metade da vida a cumprir expectativas e objectivos alheios. muitas vezes nem isso: desperdiçamos o tempo em actividades que não nos dão prazer e de nada adiantam.
vergílio ferreira disse-me uma vez que, quanto mais velho ficava, mais impaciente se sentia, e mais curtos lhe pareciam os dias para tudo o que queria fazer.
associamos velhice a lentidão – nada de mais errado; lentos são os adolescentes, que andam à procura dos seus sonhos.
envelhecer é perder pessoas, ou seja, viver em estereofonia: os que morrem ficam a ressoar dentro de nós, modelando-nos os gestos e afinando-nos o olhar.
vemos o que vale alguém ao primeiro olhar. enganamo-nos menos. o esqueleto já não dança como antigamente, mas conhecemos agora a nossa música particular.
mísia canta melhor do que quando era menina, porque conquistou a sua voz, definiu o seu fado. deviam ver a ovação daquele teatro colombiano.
deviam ouvi-la explicar, num castelhano desenvolto, que os escritores portugueses têm a generosidade de oferecer à música popular as suas palavras: «como se hemingway escrevesse para a música country», diz ela.
mísia cantou agustina e lídia jorge, hélia correia, rosa lobato de faria, pessoa, saramago, vasco graça moura. cantou versos de amália e de aldina duarte. cantou versos seus, com humildade e grandeza, que são afinal a mesma matéria.
a frase que vergílio ferreira pronunciou em bruxelas, num momento especial do fim do século passado, está agora em cartazes nas ruas de bogotá, e iluminou o pavilhão desta gigantesca feira do livro que teve portugal como convidado de honra: «da minha língua vê-se o mar».
os políticos inauguram estes eventos, afogados em microfones, e desaparecem.
seria bom que se misturassem com o público e entendessem a que ponto a música, os livros, a arte, transformam a cabeça das pessoas.
seria bom que ficassem nestes encontros internacionais – em feiras, teatros ou universidades – o tempo suficiente para perceberem que portugal não é um mendigo encarquilhado a pedir desculpa por ter ficado assim.
a política tem de se tornar mais vagarosa para poder avançar; aprender com os artistas em vez de apenas os utilizar como plumas de prestígio.
vamos todos morrer dentro de pouco tempo, e ninguém tem a certeza de que a pobreza a que é hoje condenado signifique a riqueza dos seus netos num amanhã longínquo.
quem soube prever a crise mundial gerada pela especulação bancária?
quem sabe que terramotos e descobertas ocorrerão no próximo ano?
em bogotá, como em lisboa, há cada vez mais gente a procurar no que não morre – a literatura, a música, a arte – o guião para um mundo diferente. nesse guião, portugal conta. e não deve nada a ninguém.
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