O amor é cego

O país pode estar virado de pernas para o ar. Quase um milhão de desempregados; as pensões e ordenados reduzidos; a natalidade moribunda; leis de costumes cada vez mais apertadas; televisões que mostram uma nação deprimida.

tudo isso pode acontecer, mas nada se compara à doença clubística. na semana passada, uma parte significativa da população sofreu a bom sofrer com o jogo que, eventualmente, decidiu o título de campeão nacional de futebol português. nos dias seguintes, ouvi e assisti a relatos verdadeiramente insólitos de pessoas que tinham todas as razões para estarem mais preocupadas com a sua situação laboral, pessoal ou de saúde. mas nenhum desses problemas se aproxima da tristeza com que essas pessoas viveram os dias seguintes ao do suposto jogo do título.

o que levará então pessoas com outras pretensões e preocupações a encararem um jogo de futebol como a coisa mais importante da sua vida? para mim torna-se difícil entender, até porque já estive do outro lado da barricada. já sofri com as derrotas do meu clube e da selecção nacional, mas hoje vivo o lado bom do desporto: vibro com as vitórias e passam-me ao lado as derrotas.

o que levará então tanta gente a sofrer horrores com uma derrota do seu clube? será pela irracionalidade desse sentimento? deve ser, já que depois de passar a ressaca, alguns desses sentimentos voltam a registar níveis de confiança semelhantes aos anteriores aos desastres. até ao jogo seguinte…

voltando ao tempo em que era miúdo e não perdia um jogo ao vivo, recordo-me que das imagens que me ficaram para sempre na memória foram a dos adeptos do meu clube retirados do estádio por terem tido problemas cardíacos.

nos últimos tempos lembrei-me dessas imagens, já que tenho alguns amigos que só não foram parar ao hospital porque tiveram o cuidado de tomarem alguns calmantes ou preferiram não ver o jogo.

não é, pois, muito difícil de concluir que o amor clubístico tem uma força incompreensível para quem não o vive. e percebe-se também o sucesso dos programas desportivos que durante horas e horas debatem nas televisões e rádios se determinada jogada foi ou não penálti. é claro que toda a visão dos lances polémicos é determinada pela cor de quem está a analisar os lances. o amor é mesmo cego…

vitor.rainho@sol.pt