quando começou a planear lisboa em si, pedro castanheira estava interessado na música que poderia compôr a partir dos sons da cidade. dezoito meses depois, já de partitura praticamente fechada, só a exigir ajustes de última hora forçados pela avaria de um barco, e a uma semana exacta do projecto se realizar, é o silêncio que domina a mente do criador. da ausência nasce o todo. e do silêncio nasce o som.
esse é, por isso, o primeiro pedido do músico aos lisboetas. que esta sexta-feira, dia que marca o solstício de verão, às 22 horas, lisboa se cale para se ouvir a si própria. pessoas, telemóveis, rádios, televisões, máquinas de cafés – e tudo o mais que possa contaminar o ambiente sonoro – desligados durante sete minutos para se ouvir um concerto onde os sinos das igrejas, as campainhas dos eléctricos, as buzinas dos carros de bombeiros, o aviso dos cacilheiros e os apitos dos comboios são os instrumentos. tal como o fado pede silêncio antes de soltar a primeira nota, também pedro castanheira usa o repto ‘silêncio que se vai cantar lisboa’.
esta obsessão pelo silêncio começou a manifestar-se à medida que o projecto foi ganhando forma e ficando cada vez mais claro que o grande desafio do lisboa em si é «trazer toda uma cidade para esta comunhão musical». assim, individualmente, cada lisboeta pode ser parte activa da partitura se respeitar o pedido do compositor. «é como se estivessem a tocar também. estão a tocar pausas», encoraja, salientando a necessidade em «dar lugar à cidade» numa altura em que «há ruído a mais».
com esta sensibilização, pedro castanheira também quer mostrar «que não deve ser o volume da música a adaptar-se ao ambiente», mas o contrário. «e isso também é interessante porque pegamos em fontes sonoras agressivas, que foram feitas para avisar, como a buzina que diz ‘sai da frente’, e construímos uma harmonia. da agressividade trazemos proactividade construtiva».
política do sonho
para concretizar o lisboa em si, pedro castanheira e a sua equipa contam com a ajuda de mais de 300 voluntários, oriundos de, entre outros, da escola superior de música de lisboa, do conservatório nacional e da orquestra geração. «é um evento cívico e político», diz, realçando o lado onírico da obra. «há claramente uma mensagem política, mas não no sentido partidário ou ideológico. é um exercício de união à volta de uma coisa efémera. é mostrar a nós próprios o que temos a nível musical, mas acima de tudo o que somos capazes de fazer».e se isso se realizar, não há limite para o sonho… «imaginem o que conseguiríamos fazer se tivéssemos a mesma fé em algo mais pragmático!».
apesar desta idealização apaixonada, o compositor está ciente de que o projecto está cheio de riscos e é o primeiro a admitir que, a nível acústico, «não há certezas em nada». há dúvidas que ninguém consegue esclarecer antecipadamente, como a influência do eco e do vento no som que vai chegar a cada um dos sete pontos de escuta identificados: miradouro de santa catarina, praça camões, miradouro de s. pedro de alcântara, miradouro da graça, castelo de s. jorge, miradouro de santa luzia e praça do comércio.
«acabámos por escolher espalhar o concerto pela cidade em detrimento da organização do som para um local específico porque queremos que aquelas pessoas que não saem de casa há anos também o ouçam», explica castanheira, realçando, porém, que não consegue prever «se a nota dos sinos vai chegar no tempo certo, meio segundo antes ou meio segundo depois».
ligar rio e terra
os sinos foram, aliás, a grande dificuldade no processo de composição. quando teve a ideia para lisboa em si, há cerca de dez anos, quando se aconchegava com frequência junto ao rio em busca de inspiração para tocar guitarra, pedro castanheira ficou seduzido pelo «som dos barcos a invadir a cidade».essa «carícia sonora» à capital permaneceu sempre consigo até que, há dois anos, em conversa com um amigo, teve «uma epifania»: fazer a ligação sonora entre rio e terra.
o esboço do projecto foi posteriormente apresentado à câmara municipal de lisboa, que disponibilizou uma verba de 85 mil euros para o tornar real. e há um ano e meio o compositor iniciou o trabalho de campo, gravando o audio de todas as fontes sonoras. com esse trabalho de pesquisa percebeu rapidamente que não há dois sinos iguais e não vale a pena encontrar notas precisas neles. «o que um diz ser um ré, outro diz ser um ré sustenido e outro ainda diz ser um mi. depende muito da sensibilidade de cada um e bati muito com a cabeça nas paredes por causa dos sinos. são instrumentos muito dificilmente afinados e temos sinos anteriores ao terramoto [de 1755]. não podemos exigir uma afinação impecável. este jogo de texturas foi extremamente complicado e, ainda hoje, vou para a cama com a sensação de que, se calhar, não entendi coisas que estão ali e que as podia ter utilizado musicalmente».
para ultrapassar muitas das dificuldades que encontrou, o músico contou com a ajuda de um software criado especificamente para o lisboa em si que, depois do levantamento sonoro, permitiu simular a propagação de cada fonte de acordo com a orografia da cidade, de forma a ter noção do que se ouve e a que volume de decibéis em cada ponto de escuta. «se chegasse aos barcos, por exemplo, sem esta análise da pressão sonora não fazia a mínima ideia que os rebocadores têm que estar a cerca de 30 metros das lanchas mais pequenas para se ouvirem», enumera.
os sete minutos de 1755
nas últimas semanas, a equipa do lisboa em si esteve instalada no torreão poente da praça do comércio, pronta para esclarecer qualquer dúvida sobre a acção de hoje a quem estiver a participar. mas, depois do silêncio, há um pedido que farão sempre questão de passar. minutos antes das 22 horas vai haver um ‘toca a reunir’ e, depois, será lançado um very light, pedindo-se aos lisboetas que iniciem um prolongado ‘shiuuu’. «queremos simular o som de quando havia pedrinhas à beira rio e ele vinha até à costa e recuava», diz pedro, explicando que depois desse momento seguem-se os sete minutos de concerto, numa alusão directa às sete colinas da cidade, decisão que acabou por revelar outra coincidência: o terramoto de 1755 durou precisamente sete minutos. «provavelmente essa foi a última vez em que toda a lisboa olhou, em massa, para o rio durante sete minutos, à espera do que ele trazia. agora vamos fazer o mesmo, mas desta vez o rio vai trazer coisas positivas». e vai potenciar a tal carícia sonora há tantos anos imaginada por pedro castanheira.
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