Tomar um copo na sala de estar da avozinha

“Ah, eu tinha um destes jogos em criança!”, exclama Filipe Castro, enquanto abre imediatamente um sorriso rasgado e infantil. A razão de tamanho contentamento é um simples jogo de basquetebol, com uma tampa de plástico transparente a cobrir o tabuleiro. Filipe Castro tem 42 anos e conta à mulher como era “capaz de passar tardes…

à medida que vai percorrendo esta ‘sala-de-estar’ – é assim que carlos fagulha, o proprietário do café/bar wanli, situado na lisboeta calçada do marquês de abrantes, lhe chama – filipe castro acorda mais memórias. os rádios antigos e as poltronas em pele transportam-no para casa da sua avó, e os bonecos da saga guerra das estrelas despertam outras brincadeiras de criança. mas este sentimento nostálgico não é exclusivo seu.

qualquer pessoa que visita o wanli entra automaticamente numa máquina de viajar no tempo e acaba por encontrar conforto neste vestígio de vários passados que convivem aqui. “todos os dias acontece, de repente, ouvir alguém soltar um grito, a dizer que teve isto ou aquilo igual. mas o mais comum é isso acontecer com esses jogos dos anos 80”, comenta carlos, de 59 anos.

o antigo antiquário e professor universitário de história abriu o wanli há três anos, depois de um percalço na carreira académica. “fiquei desempregado aos 55 anos, porque ensinava os meus alunos a pensar. como isso é proibido no mundo actual acabou aí a minha carreira”, conta, lamentando o facto de uma pessoa chegar aos 50 anos e tornar-se “um fóssil para o mercado de trabalho”. quando o subsídio de desemprego começou a aproximar-se do prazo de validade, o historiador foi obrigado a pensar no que poderia fazer e, numa noite, projectou o wanli. “agarrei em algum património que tinha – um morgan, um aston martin e um jaguar – e vendi”.

com o dinheiro dos três automóveis de luxo, começou a construir o espaço, com uma exigência a encabeçar a lista de intenções: “tinha de ser uma coisa com carácter!”. e a decoração, mais de 80% pertença de carlos antes do wanli abrir, confere isso mesmo. os objectos ali depositados vão desde o século xvi até aos dias de hoje e o mais antigo, um prato quinhentista, de porcelana chinês do período do imperador wan li, da dinastia ming, acabou por dar nome ao local. “no século xviii, este espaço funcionou como uma das cavalariças do palácio távora. eu fui casado com uma távora e o palácio, agora a embaixada de frança [bem perto do bar], tem uma sala toda coberta com a maior colecção do mundo de pratos wan li. por uma questão de simpatia para com os nossos antigos inimigos franceses, que roubaram menos que os nossos aliados ingleses, trouxe um prato wan li para aqui”, conta o proprietário, não conseguindo evitar a pequena lição de história.

apesar de ter abandonado a sala de aula, o ambiente propício à conversa do bar ressuscita sempre o professor que há em carlos, especialmente com a clientela interessada e curiosa que, na sua maioria, frequenta o wanli. “vem para aqui gente de todas as gerações e credos. sou monárquico por uma questão de educação, republicano porque identifico-me com alguns valores da república e lutei por ela, e comunista no trato humano. o que quero dizer com isto é que gosto de pessoas e isso, naturalmente, atrai todas as pessoas”, define-se, assumindo que o wanli é um eco directo da sua pessoa.

colectividade contemporânea

dentro deste espírito de ter as portas escarnadas para receber a diversidade, patrícia craveiro lopes, inês valdez e joana nóbrega abriram a casa independente, no largo do intendente, em outubro de 2012. as três sócias já trabalhavam juntas há dois anos e organizavam com regularidade actividades culturais nesta zona da cidade. “íamos descobrindo espaços e usando-os para as nossas actividades, mas sempre temporariamente”, diz patrícia, comentando que um dia decidiram procurar algo mais definitivo. “estávamos sem abrigo e quando visitámos este espaço percebemos que tínhamos uma casa aqui”.

sede, no passado, da comarca de figueiró dos vinhos, a decisão de baptizar o espaço de casa surgiu intuitivamente. “quisemos preservar o ambiente de colectividade, mas dentro de um espírito contemporâneo. daí o espaço ser acolhedor, até para que as pessoas se sintam, efectivamente, em casa”, afirma inês. essa percepção de acolhimento é conferida pelo mobiliário antigo que preenche as divisões do apartamento e alguns objectos datados – uma cadeira de dentista e placas com avisos médicos – que trouxeram do andar de cima, um antigo consultório de dentista e uma associação de socorros mútuos.

apesar de ocuparem o prédio inteiro, só o primeiro andar é que está, por enquanto, aberto ao público. ali, o espaço divide-se por um café com cómodas antigas a fazer de balcão, um pátio a céu aberto, uma sala de estar com cadeirões vintage, casas-de-banho amplas a servir de galerias para exposições e um salão nobre com um palco para concertos. mas além da evidente aposta cultural, a programação da casa independente alberga ainda workshops de jardinagem urbana (com a horta vertical no pátio a servir de exemplo) e actividades para crianças. mais um reflexo dos interesses das três sócias e das suas próprias necessidades enquanto mães.

mas o convite para se programar esta colectividade está aberto a todos. “é muito importante que a casa seja habitada por outras pessoas. isto não é só uma sala de espectáculos, uma cafetaria, ou um bar com esplanada. tem várias vivências cá dentro e isso é que lhe confere personalidade”, salienta inês, crente de que não vão passar de moda. “a decoração não é só vintage porque o vintage está na moda. as coisas resultam quando são honestas e não há muita pretensão”.

labirinto da saudade

tal como carlos fagulha, também luís pereira é licenciado em história e tem esse apego emocional pelo passado. “tenho a mania das antiguidades”, avisa logo o proprietário do café saudade, na vila de sintra. mas nem era preciso o reparo. basta percorrer o espaço – que funciona tanto como café, casa de chá, bar às sextas e sábados, galeria de arte, espaço para tertúlias e concertos, loja de artesanato português e prataria nacional – para se sentir essa paixão. por aqui, não há peça que não conte uma história.

erguido das ruínas da antiga fábrica de queijadas finas mathilde, o café saudade exibe várias mesas art déco, algumas vindas de antigas tabernas, estantes e armários de extintas mercearias, um sofá-cama de um hospital entretanto encerrado, um balcão vindo de uma padaria da chamusca e outro feito com madeira da baixa pombalina. “sou coleccionador de peças. apanho coisas do lixo, compro muitas velharias e depois recupero”, enumerando, falando com especial orgulho do cadeirão de madeira com dois lugares, “do início do século xix”, que tem exposto na sala mais oposta à entrada.

abrir um café nunca foi um desejo de luís pereira, mas quando mary, a sua mulher norte-americana, veio viver para portugal e não conseguiu continuar a trabalhar como enfermeira, o casal pensou em algumas alternativas profissionais. “como eu trabalhava em ourivesaria, decidimos abrir uma, mas só de prata nacional. viemos ver este espaço, um sítio tão encantador e místico, e percebemos logo que iria funcionar muito bem como café e casa de chá”.

depois de um intenso processo de reconstrução, o café saudade abriu portas há quatro anos e, desde então, tem sido elogiado como um dos ex-líbris de sintra. além da decoração a relacionar-se com a memória colectiva dos clientes, a encruzilhada de salões, salas e salinhas também traz individualidade ao espaço. luís e mary pereira – que se preparam para abrir, no final do mês, a casa de hóspedes chalet saudade, também em sintra – chamam-lhe o labirinto da saudade.

alexandra.ho@sol.pt