‘Two Maybe One’: Há vida e solidão em cada caixa

Two Maybe One é a nova criação de Marco Martins, em estreia hoje no Teatro Maria Matos. Reflectindo sobre o modo de vida nas grandes cidades, o espectáculo reúne dança, teatro e música, e conta com o casal de coreógrafos Sofia Dias e Vítor Roriz, o escritor Gonçalo M. Tavares e o Coro Gulbenkian.

dois indivíduos, um homem e uma mulher, arrastam caixas de vários tamanhos num palco semi-despido. coordenados, vão juntando módulos. aos poucos ergue-se uma muralha construída com aquele amontoado de formas geométricas, que tanto pode ser uma casa, um prédio, uma rua ou uma cidade inteira. o casal nada explica, deixando essa definição encarregue ao espectador. mas é fácil perceber, à medida que cada uma daquelas arcas vai ganhando vida, que cabem ali todas essas noções.

two maybe more, concebida por marco martins em colaboração com os coreógrafos e bailarinos sofia dias e vítor roriz, é o espectáculo que abre a nova temporada do maria matos e tem a particularidade de juntar teatro, dança e música em palco. catalogar a obra – em cena hoje, amanhã e domingo e, depois, nos dias 12, 13 e 14 – não é fácil, nem sequer para o seu criador. «não é só dança, não é só teatro, não é só música. há um cruzamento multidisciplinar e chega a muitos campos, mas é isso que é interessante”, diz marco martins, salientando que o espectáculo surgiu, sobretudo, da sua vontade de trabalhar com sofia dias e vítor roriz, os mesmos que venceram, em 2011, o prix jardin d’europe, um prémio que distingue jovens coreógrafos contemporâneos. «identifico-me bastante com a linguagem coreográfica deles, muito doméstica e pessoal. uma vez que além de serem um casal de coreógrafos e bailarinos, também o são na vida privada, achei interessante fazer uma reflexão sobre a relação de um casal com o mundo exterior” e, consequentemente, explorar o confronto deles com os outros, do indivíduo com a sociedade.

a sociedade aqui é representada por um coro (o da gulbenkian, que co-produz o espectáculo) que não se limita a cantar. «a introdução do coro foi para alargar a linguagem da coreografia a um corpo maior. não são dançarinos, mas fazem parte do jogo”, considera marco martins, referindo que além dos dois bailarinos, os restantes oito elementos do coro são igualmente intérpretes activos da história. a cada uma desta personagens corresponde um número, e o seu perfil vai sendo desvendado pelo casal de bailarinos: «um é um homem; um é uma mulher; um dorme mal; um está a ver televisão; um quer mudar de casa; um quer mudar de sexo; um quer matar o pai; um não pára de falar…”, e assim por diante.

fala-se muito pouco em palco e, ao contrário do que é habitual em teatro, não foi o texto que gonçalo m. tavares escreveu para two maybe more – em inglês, respeitando o trabalho fonético desenvolvido pelos coreógrafos em obras anteriores – que ditou os primeiros esboços da peça. o espaço cénico foi o ponto de partida, com as caixas a representarem «modos unipessoais de habitação”, esclarece marco martins. «as formas de arquitectura distintas correspondem a diferentes organizações sociais. há uma reflexão sobre isso, sobre os sincronismos das grandes cidades, que diferem se se vive em prédios muito altos ou baixos, em casas unipessoais ou massificadas”.

marco martins admite que neste seu trabalho, talvez o mais abstracto até à data, estava mais interessado em «criar imagens e suscitar emoções” do que em dar um sentido à acção, mas não concorda com a ideia de que two maybe more carece de uma linha narrativa. «há narrativa, só não é uma ideia aristotélica, com princípio, meio e fim. houve essa preocupação, embora não houvesse uma vontade soberana de trabalhar narrativas”, diz, confiante de que cada espectador deverá encontrar uma história naquilo que vê.

a ajudar esse fio condutor está também a música, uma encomenda da fundação calouste gulbenkian a pedro moreira. «o pedro foi compondo a música um bocadinho como a vida interior destas personagens, mas também muito influenciado pelo texto e pelo trabalho do vítor e da sofia, porque muitas das palavras que eles dizem já têm um ritmo repetitivo, uma cadência dentro delas”, explica o encenador, mencionando que, como em qualquer novo trabalho artístico, «o material vai-se encontrando e esse processo de depuração é bastante desafiante”.

cada vez mais encenador

conhecido do grande público como realizador, pelos filmes alice e como desenhar um círculo perfeito, nos últimos anos marco martins tem-se dedicado maioritariamente ao teatro. mas, da mesma maneira que esta não é a sua primeira incursão no universo da dança – trabalhou com clara andermatt, em 2010, em durações de um minuto –, também não há qualquer intenção de abandonar a sétima arte. «simplesmente o cinema em portugal tem andado parado”, diz, revelando que vai voltar a filmar em 2014, com o actor nuno lopes como protagonista do próximo filme.

até lá, o que interessa ao cineasta/encenador é continuar a desenvolver a sua paixão pela pluralidade e pelo cruzamento artístico, pensando histórias que possam ser contadas através de imagens, sejam elas «fílmicas ou cénicas”. «apesar de serem formatos diferentes, há um trabalho de montagem e de encadeamento muito parecido no teatro e no cinema. isso faz com que consiga trabalhar em diferentes formatos e me sinta realizado aqui, como a fazer um filme. a maior diferença talvez seja que no cinema os processos são muito demorados, preciso de dois anos para fazer um filme, e aqui não. gosto deste lado mais imediato, destes processos artísticos que encontram mais rapidamente o seu público”.

alexandra.ho@sol.pt