Parte II: Memórias e suspeitas

O dia passou calmo, mas enervante. Parece que o fogo no fim-de-semana decidiu descansar, até no Caramulo se deitou a dormir. Mas a intuição premonitória das equipas de vigilância, dispersas por vários pontos, mantém-se alerta. O fumo, invisível ao olhar dos inexperientes, não lhes escapa. Um grupo de Tabuaço reage na hora e desloca-se para…

nem o perigo de ficarem apeados os demove: “são as condições que temos e espera-se milagres”. trata-se de mais um reacendimento. a noite caiu e descobre-se o canalha a ganhar fôlego entre o roupeiro de árvores. desenrola-se a mangueira. desenvoltos, saltam da estrada e atravessam o regadio num pulo de metro e meio. de agulheta vai uma novata, já de pé torcido pelo salto e canela moída pelo embate numa rocha.

os mosquitos multiplicam-se com a humidade, e morcegos e andorinhas abastecem o estômago incomodados com a pressão da água. os fogachos querem levantar orelha e, na frente da equipa, o elemento estreante, com o ajudante nas suas costas, é baptizado com o primeiro coice da água sem cair por terra. combate o pequeno inimigo e o bicho começa a pegar.

está na hora de a equipa de márcia, já revezada, regressar ao quartel. retemperam-se forças com um jantar pesado que vence o cansaço e arrasta o sono. homens e mulheres procuram sossego nas camaratas. na feminina, fica-se de paleio. teresa ferreira, de 32 anos, acabou de entrar de escala. formou-se em comunicação social há dez anos, mas nunca conseguiu emprego na área. gostava de rádio, mas na faculdade defrontou-se logo com a exclusão que dita o mercado. com o sotaque beirão não iria longe. e assim foi. já trabalhou como secretária, porteira nos correios e agora candidata-se pelo ps a vereadora da câmara no distrito.

passa das duas horas da manhã e teresa, de uma beleza inusitada, queima o tempo a ajudar a colega a fazer a cama. há muitos dias que perdeu o sono. a recordação de cátia e a de outros colegas mortos e feridos assentou-lhe no cérebro como uma mortalha. faz flash back: a outra era do tipo rapazito, baixinha, franzina, cabelo curto e tatuagens nos braços. já a conhecia de outros incêndios, mas no do caramulo trabalharam lado a lado e, nos momentos de pausa, trocavam emoções.

tal como márcia, nesse dia foi chamada para o combate em vila longa e perdeu-lhe o rasto. a informação chegou no meio do fogo, mas só quando parou para almoçar recebeu o choque pela televisão: “tinha mesmo espírito de combatente, nunca esperei que fosse ela, era daquelas que não se deixam apanhar. comecei logo a chorar”. agora, dorme nos soluços das memórias que apenas rebobinam momentos maus: “estou sempre a sonhar que estou cercada pelas chamas, que acabou a água, que vou morrer. precisamos de apoio psicológico. e não temos. perde-se um colega e no dia seguinte parte-se ao encontro de quem o matou”.

chama-se pelo sono por uma questão de sobrevivência, cai-se na sua teia com a noção de se estar a despertar. o tom da sirene sobe à dimensão da tragédia. duas horas depois, o som estridente anuncia fogo. teresa acordou primeiro para uma urgência hospitalar. mas, sem demoras, vestem-se as fardas. as botas, que parecem enxertadas em corno de cabra, já prometem tornar-se num pesadelo.

antónio vai ao volante. com as horas trocadas, não dormiu mais de uma hora mas, nestes momentos, a adrenalina dispara, está fresco como a água da fonte. por estas bandas, o povo anda com a alma em farrapos, a incerteza é de uma angústia arrepiante. na zona de duas igrejas, onde o último incêndio pegou quatro dias a fio, um popular deu o alerta de que ele voltara a arreganhar a tacha.

o terreno não ajuda, o carro desvia-se dos obstáculos e galga a serra. o motorista alterna grandes momentos de silêncio com jorradas de histórias. já fez parte do grupo de primeira intervenção do quartel, agora é apenas voluntário ao lugar onde se encontra a morte: “ganhava 600 e poucos euros, o mesmo que um varredor de rua. não lhe tiro o valor, mas enquanto esse funcionário tem apenas a responsabilidade de pôr uma folha no lixo, nós temos a responsabilidade de pôr uma vida a tempo no hospital e a obrigação de salvar, correndo perigo de vida, a população do fogo, dos acidentes. de inverno e de verão, nunca paramos e só se lembram que existimos quando há mortes”.

o desfecho de cátia atravessa-o com uma corrente de ar gelada. profecia mais catástrofes, perde-se em elucubrações: “na volta, os outros colegas só estão vivos porque estão ligados às máquinas. querem que o tempo passe para não serem uns em cima dos outros”. estava próximo da verdade: dias depois, outros três partiam (no total, oito vidas) e a terceira vítima de carregal do sal, com os dois braços amputados, se sobrevivesse teria ficado incapacitada para sempre.

a conversa segue e chega ao maior comparsa do fogo: o incendiário. antónio desconfia que, por trás desta obra macabra, não estão apenas doidos e alcoólicos: “às vezes, ligam a avisar que há fogo numa determinada direcção. chegamos lá e não há nada. olhamos para o sentido contrário da serra e ele já lavra. isto tem a mão de quem sabe da poda e que nos quer longe do local para que o fogo encorpe”.

avista-se duas igrejas e nem sinal de fumo. andamos perdidos. os anos de tarimba ditam o caminho: “não é por aqui, ou então não é um fogo grande, deve ser um reacendimento dentro da queimada. pára na aldeia de onde partiu o alarme, pede coordenadas e segue. antónio faz o retrato antecipado: “isto é tudo mato lambido, já foi queimado, não deve ser uma coisa por aí além”. o anúncio combina com o cenário. o “merdoso” quer ressuscitar. o motorista salta para desenrolar a mangueira, a agulheta enrosca-a à manga, os outros puxam-na para a frente das chamas.

em dois tempos, sufocam-no. regressa-se ao quartel com a tranquilidade que antónio transmite: “este dava para matar ao pontapé”. nas camaratas, passa-se pelas brasas. uma hora depois, toca a sirene. teresa, que já regressou à base, avisa que se trata de um fogo urbano na aldeia de travancela, a sete quilómetros do quartel. sai-se em três viaturas: uma de combate a fogos urbanos, a ambulância de socorro e a de abastecimento de água manobrada por antónio, também especialista na matéria.

leia mais:

parte iii: não há caminhos, nem acessos

parte iv: populações em suspenso

parte v: temperaturas de 600 graus

 

felicia.cabrita@sol.pt