pelo caminho, as terras queimadas tornaram-se no adereço deste verão, colocam-se as máscaras de protecção e os capacetes – que, quando o fogo aperta, também derretem. mais uma vez, o motorista usa os dotes de adivinho: “quando lá chegarmos, ainda somos insultados. para quem espera é uma eternidade, entram em desvario. uma vez, o dono de um palheiro até me ameaçou de martelo. é a vida de bombeiro”.
finalmente, a aldeia, com becos sem saída e ruelas apertadas, um sarilho para estacionar os carros. ao fundo do povo, uma espiral de fumo e os rumores abafados da aldeia, que oscilam do tom de angústia para vozes enraivecidas. a vizinha da dona da casa que chamou os bombeiros espera-os de fogo na língua: “só agora! levaram hora e meia para cá chegar, bem que podíamos estar mortos!”.
as palavras da mulher reavivaram a cólera de antónio. cátia atravessou-lhe o pensamento, mas calou o que lhe apetecia dizer: “a minha colega ardeu em cinco minutos”. a bisbilhotice local sobrepôs-se à fúria e a senhora trocou os bombeiros por arlete, a autora do incêndio: “fui a primeira a ver o fumo mas pensei que era da chaminé porque, mesmo com este calor e fogão em casa, ela faz a comida no lume. sabe, ela não é doidinha mas também não é perfeita. até já lhe morreu um filho na barriga”.
enquanto uns, no primeiro piso, procuram a caixa da electricidade para desligar a luz, eduardo, o chefe da equipa, de lanterna no capacete e sem ver um palmo à frente dos olhos, de agulheta, enfrenta as chamas que à medida que se vão apagando levantam uma escuridão viscosa na antiga loja dos animais. no pescoço, como uma tatuagem, cicatriza uma queimadura de segundo grau, a graça de uma folha de eucalipto em chamas do último incêndio.
ainda eduardo estava no liceu quando, por arrasto de um amigo de infância, bombeiro de terceira, começou a passar as tardes no quartel, às escondidas dos pais. poucos são aqueles capazes de explicar esta vocação e ele nem se esforça. num mundo de trepadores obcecados pelo dinheiro, nele a ética é uma questão de responsabilidade pessoal que casa com o respeito pelos outros.
durante seis anos, lutou contra a vontade da família. seguiu engenharia, mas, pelas mesmas razões, trocou o curso por enfermagem e dobrou os pais. mas esta é a sua grande paixão: entrega-se-lhe nas férias e nas folgas, não há dia que não passe pelo quartel. há situações que nunca se esperam mas, com engenho e paciência, eduardo acaba com a obra perigosa do desleixo e faz o rescaldo.
arlete fizera o pequeno-almoço e saíra sem apagar o lume para o paleio matinal com as comadres. por uma racha do piso de cimento onde assenta a lareira, as brasas foram caindo para o barril de pólvora. por baixo, toneladas de lenha e caruma fizeram o resto. a mulher e os populares, quando deram pela coluna de fumo, ainda tentaram dominá-lo, mas não deram conta da empreitada. arlete está agora com teresa na ambulância, em estado de choque: “quem me dera ter morrido queimada”, grita, com assomos de possuída. a tensão disparou e a análise ao sangue sinaliza um elevado nível de glicémia. “tem diabetes?” – pergunta teresa, no seu tom melaço. a outra conhece uma imensidão de misérias, mas essa não. a licenciada em comunicação social não arrisca e a ambulância segue para o hospital.
está-se de saída quando um cheiro mesclado de fumo com combustível, numa outra divisão da loja, nos trava. pelas frestas da porta de madeira, o cenário é aterrador. mas há momentos de sorte: por um triz a aldeia virava um vulcão em erupção. antónio arromba a porta, parece um cão de caça entre as pinhas e a lenha que forram os arrumo até ao tecto.
na parede contígua à zona ardida, uma mancha escura alastra. e retoma-se o ciclo. para despedida, alguém aconselha o presidente da junta de freguesia a desfazer-se da lenha da casa de arlete, antes que a aldeia vire um palco pirotécnico mortal.
leia mais:
parte iv: populações em suspenso
parte v: temperaturas de 600 graus