os sentimentos da população, cansada da incerteza do futuro, dividem-se. o sol está a pique e o calor desce do inferno. o capacete, a máscara de protecção e a farda de algodão agarram-se ao corpo como um fato molhado acabado de passar. uma velhota, comovida com o ar moribundo da estreante, abre portas para oferecer água e o que mais lhe aprouver: “a menina não quer descansar? ainda há pouco uma colega sua esteve aqui, tinha os pulmões envenenados, coitadinha, já foi para o hospital”.
dezenas de bombeiros cerram fileiras junto às casas, não vá ele descer tresloucado. um pouco mais acima do casario, no início da mata, um armazém de sucata é a maior preocupação. alguns carros sobem para o local, enquanto outros descem da frente de combate para reabastecer de água. junto à sucata, grupos de populares, com uma animação insólita colada nos rostos, preparam uma cartada perigosa. uma mulher sussurra: “deixem-no descer que a gente agarra-o à mão”.
josé carlos pinto, comandante dos bombeiros voluntários de lourosa, uma das várias corporações que estão no combate, é de poucas falas. na classe mora, mesmo sem fé, um sentimento religioso. o centro das suas atenções são o fogo, a população e a protecção dos seus homens. enquanto o carro sobe, escuta-se o silvar da víbora. labaredas com mais de dez metros dançam por cima e por baixo das equipas, que trepam a colina tentando fintá-la.
os ‘malucos’ dos canadair
o chefe da equipa, paulo esteves, esbraceja. aponta para cabos de alta tensão que fazem tecto à floresta e para dois canadair croatas, que chegaram nesse dia para reforçar os franceses e espanhóis que estão quase desde o início a apoiar as forças nacionais: “afastem-se, isto está muito perigoso”. as folhas de eucalipto, tipo setas em chamas, procuram vítimas.
josé carlos pinto observa com deleite os aviões que se enquadram no fogo e fazem tangentes às árvores. um encavalitado no outro, mantendo entre os dois uma distância de dez metros, cai a primeira descarga de quatro mil litros de espuma branca e viscosa. o outro desce de imediato e as chamas enrolam-se num manto negro. o comandante olha-os com admiração: “são doidos, é preciso não ter amor à vida para descerem desta maneira. mais um pouco e ficam colados às árvores”.
paulo esteves, homem para 40 anos e picos, alto como um poste, meio desengonçado, como não convenceu ninguém a desandar, desce com ar de poucos amigos: “sabe, o fogo também faz vento e provoca um tornado. sabe o que é um tornado? é quando a gente lá fica!”. vira-se para o comandante e alerta-o: “os croatas são malucos, despejaram mesmo em cima dos cabos de alta tensão e nós abanámos todos com as descargas eléctricas”.
o comandante abandona o carro, põe pé nos trilhos. afasta-se quilómetros, embrenha-se nas matas, procura novos acessos para as viaturas poderem aproximar-se da linha de combate. as duas frentes progridem em cunha, uma de encontro à outra, para o entalarem. as queixas são sempre as mesmas: a falta de caminhos e a ausência de limpeza da mata, hábitos já enxertados na vida quotidiana. pelo rádio, chega-nos a voz transtornada de paulo: “preciso de uma ambulância, um dos meus homens está aflito, deve ter feito uma ruptura muscular”.
de volta ao carro de comando, em frente à galeria principal, os sentimentos explodem e cai a máscara da aparente frieza. enquanto o jovem, com a dor pisada no rosto, é colocado no jipe, paulo, com o olhar tresloucado de um pai perante um filho débil e enfermiço, repete vezes sem conta: “quando chegares ao hospital liga-me logo. dá-me notícias, por favor”.
depois de o deixar na ambulância, regressa-se a silveira, que está à beira do colapso. o grupinho, que andava com ares de quem prepara alguma, desaparecera. o comandante, na sua misteriosa capacidade de adivinhar as traições do fogo, fixa a zona da sucata. pelo rádio chama a gnr para agarrar o infractor e, de seguida, avisa os seus homens: “o tipo da sucata fez um contrafogo, com o vento que está agora é que as casas vão à vida”.
o grupo optara por imitar uma das técnicas de combate dos bombeiros, que só os especialistas com aparelhos próprios para prever a orientação dos ventos, dominam. as horas iam passando e o fogo descia, achegava-se cada vez mais ao casario. o dono da sucata, com os seus cúmplices, incendeia a base da encosta. esperam que a criação do novo monstro galgue em direcção ao outro, e aos bombeiros, queime o resto da vegetação, consuma o oxigénio e, no encontro, se matem um ao outro. mas o vento não está a seu favor, e vira-se o feitiço.
salva-os a reacção imediata do comandante, que pede dois helicópteros para apagar a nova frente. entretanto, o sucateiro subira a encosta para melhor mirar a sua obra e cantar vitória. está de prosa com paulo, que transborda paciência numa tentativa sem êxito para o educar: “olhe que assim ainda vai preso, estraga a sua vida”. e o outro, com papadas de felicidade que lhe engordam o rosto, ainda está convencido que transmitiu ao bombeiro uma pitada de ciência.
escureceu, o céu parece pintado de carmins violáceos e brumas negras, cor que tão depressa não o abandonará. o comandante carlos soares, com a atenção de ave de rapina, nunca larga os seus homens e chama os novos recrutas ao sátão.
regressa-se à base, onde o reincidente escolheu um vale para se assanhar. márcia tem as reservas cheias de ferocidade e generosidade. no carro, impera o silêncio. a rapariga mantém-se previdente. já sabe que a coisa está brava, que ele foi afogado no rio e dele se levantou e que duas aldeias se encontram à mercê do seu assobio. “quando saímos do quartel nunca se sabe o que vamos encontrar”, sentencia a voz catraia. ao volante, desta vez, vai carlos coelho, motorista de pesados. o rosto branco, emoldurado pelo cabelo loiro, afasta os 29 anos de vida já esfarrapada, mas a destreza com que mexe o veículo que parece ter a intenção de nos atirar para o abismo faz encará-lo com confiança.
eduardo, o chefe da equipa, faz com ele uma dupla siamesa. agarra a tela do passado e deixa-a correr: “já estivemos os dois encurralados pelo fogo. o meu capacete e óculos derreteram. retirámo-nos, revezando-nos na agulheta, a molharmo-nos um ao outro – o que não se deve fazer, pois com a temperatura que o corpo atinge podemos apanhar um escaldão”.
de um dos lados do vale, encontra-se o comandante de um dos sectores, luís albuquerque, 37 anos, ex-professor de ginástica que optou por esta profissão e é voluntário em part-time. os carros movem-se para deixarem aproximar-se os bombeiros de sátão. o caminho abrupto não atrapalha coelho. de marcha atrás, a sensação é a de que se vai cair precipício abaixo até nos afogarmos no rio mau. mas coelho manobra o pesado como quem comanda um triciclo e consegue passar a correnteza de árvores.
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