o comandante de castro daire que pediu reforços faz o ponto da situação. há 24 horas, tinham o incêndio, que rodeava duas aldeias, controlado. fez-se o rescaldo, mas, de súbito, ele recuperou a virulência dos primeiros momentos. a sua equipa já desceu, pegou-lhe pelos cornos e tem como missão enfiar-lhe a cabeça no rio. ao grupo de márcia compete destruir-lhe o flanco esquerdo e juntarem-se ao primeiro.
coelho saca da mangueira e márcia engata-lhe a agulheta. tira-se as medidas à descida vertiginosa. ao fundo, o fogo dança como um pião ensandecido. a agulheta vai na frente e a bombeira sabe, por experiência própria, que de um momento para o outro, com uma guinada do vento, pode apanhar de caras. eduardo vai nas suas costas, preparado para a amparar ao primeiro impulso da água quando começar a correr. os outros seguem o chefe, pela linha de fogo que o encaixe de novos lances faz progredir.
a descer, todos os santos ajudam. dizem. márcia agradece a outros seres: “este trabalho não se consegue fazer sem um bom comandante, que temos, espírito de equipa e confiança uns nos outros. é isso que nos dá força”. é das poucas lições que não se podem subverter. na descida vertiginosa, não se vê um palmo à frente do focinho, umas vezes um pé atola-se na terra encharcada pelo primeiro rescaldo, outras procura-se uma laje para escapar da sucção da terra e escorrega-se.
aproxima-se a boca do inferno, as labaredas espaventam com a aproximação e, de repente, a voz do comando manda subir. com o fogo a querer enrolar-se aos pés, a equipa faz o caminho inverso. márcia, que ia preparada para o agarrar pelo pescoço, não entende a contra-ordem, e o mau génio sobe como gasosa a rebentar no gelo: “que é isto? primeiro mandam-nos descer, agora chamam-nos ao ponto de partida?”.
ninguém fica pelo caminho. márcia troca a capa da fragilidade pela musculação de um gigante. com a mão, empurra a novata pelas partes baixas até se sair do buraco.
a meio da encosta imunda de cinza e brasas, luís albuquerque esboça novo ataque. a capa da frieza cai-lhe aos pés. nada suscita mais medo do que a ausência de memória, e a recordação da morte de cátia, rapariga do seu distrito, apanha-o com um trovão: “esta parte por onde desceram ainda está muito verde e não faz sentido deixar uma ilha entre a zona queimada para voltar a arder e matar mais homens. do outro lado do rio já está tudo ardido e já não há o perigo de pegar neste lado”.
o flanco esquerdo está a progredir para o lado contrário da queimada, e a malta de sátão vai reforçar a primeira equipa. o terreno, dividido por socalcos, alguns de dois metros, é pior do que o inicial. márcia cai entre as silvas e levanta-se como um pinto acabado de nascer. eduardo silva, 19 anos – para a rapariga o ‘pinchinho’, alcunha que arrasta do mister de seu pai, um picheleiro da zona –, grita aos da frente que cortem o lance.
ao rapaz, que está na tropa e nas folgas assenta noutro quartel, cabe um dos trabalhos mais pesados: fornecer metros de manga para a frente progredir. mas, no trajecto entre o carro e a agulheta que anda à bica do rio, é cercado por reacendimentos. grita, aflito: “cortem o lance, cortem o lance”. os outros, com o fogo pelas costas, obedecem e recuam. eduardo apaga as chamas que o rodeiam com a boca da mangueira, impedindo que a equipa que vai à frente seja apanhada à traição.
mais acima, quem parou leva com ele pelas trombas. na espessa escuridão, perde-se a equipa. luís albuquerque, o comandante de castro daire, tenta orientar. na encosta, os vapores do chão rescaldado e as brasas vivas fazem-no pular de laje em laje. os pés parecem bichados pela sarna. o fogo aglomerou-se ao cimo da encosta e o vento enlouquecido levanta numa dança macabra as folhas em chamas dos pinheiros que cruzam o céu numa espécie de cataclismo planetário. acompanha-se a sabedoria com o receio de que as botas derretam: “este fogo, no flanco direito, deve ultrapassar os 600 graus centígrados. não sente o seu primeiro escaldão?”.
do outro lado do rio, o comandante do sector bravo, na ponta final do rescaldo, intercede pelos seus homens: “há doze horas que não comem”. luís, com as dores dos outros às costas, esforça-se para os acalmar: “alfa, responde. já aguentámos tantos sacrifícios, segurem-se mais um pouco que na quarta-feira já começa a chover”.
o bandalho esconde-se, márcia volta com a equipa e o sorriso sempre à superfície: “é um terreno difícil, muito a pique, mas esta é a nossa vida”. fintaram-no, recolhem o material, mas mantêm-se de vigilância, não vá o gajo acordar. passa a adrenalina e recolhem ao carro. pelas cinco da manhã, coelho, ao volante, acorda em sobressalto: “sonhei que o travão estava desengatado e que o carro estava a ir ribanceira abaixo. joguei de imediato a mão ao travão”.
há situações que nunca se esquecem na vida.