no mês gordo do verão, as terras à volta de viseu estão enegrecidas de cinza até às entranhas. aqui e ali, grupos de bombeiros, no rescaldo dos últimos incêndios, montam vigilância a campos e florestas empapados. atentos, não vá o fogo aparecer na sua louca galopada.
márcia oliveira, voluntária dos bombeiros de sátão, distrito de viseu, conseguiu finalmente parar para almoçar com a sua equipa. com apenas 19 anos, tem tido uma vida intensa, ainda que provisória. já lhe viu as fuças, sentiu as suas amarras e na serra do caramulo perdeu colegas – uma delas cátia pereira dias, 21 anos, enterrada no dia 30 de agosto, a um punhado de quilómetros, em carregal do sal. recolheu às trevas com que convivera de perto, mas, desta vez, de uma forma definitiva.
o corpo da jovem, conforme os seus desígnios, foi cremado na véspera. a combatente lutou contra o pó e as cinzas e nelas desejou converter-se. a urna baixou apenas com um pequeno pote do que foi e, em casa, no silêncio enervante do luto, os pais tentam atenuar a ausência com a outra parcela de pó em que se transformou a filha única. o último acto do pesadelo ronda a equipa de márcia, que, subjugada ao incêndio que há quatro dias nasceu em duas igrejas (uma das povoações de sátão) e que numa corrida de 22 quilómetros alastrou o seu rancor, não conseguiu marcar presença na cerimónia de despedida da camarada.
de um salto, o fogo pulou o rio vouga até matar a gula em cruz. márcia, numa marcha frenética para o agarrar, andou numa turma de 180 homens, quase uma trintena de viaturas de combate e quatro aviões de apoio. a rapariga ainda mal recuperara de uma das suas réplicas em vila longa – onde, do sol-nado ao sol-pôr, correu por lá um inferno. aí, numa das frentes de combate, viu-se cercada pelas chamas. mas nela, por incrível que pareça, o medo é ainda semente adormecida.
morena, ar trigueiro e voz doce, rasga o sorriso. o aparelho nos dentes reforça a imagem de colegial que não encaixa no que afirma: “o fogo nunca me assustou, só penso em dar cabo dele e sair depressa do seu bafo”. de seguida, foi sovada com uma descarga de água do balde de um helicóptero. com o olhar parado de quem se esforça para recuperar a imagem, transforma com o sorriso o perigo em comédia: “quase mil litros de água, foi como ser apanhada numa tempestade de pedras. caí e fui a rebolar até parar aos pés de outro colega. e ainda queimei o nariz. o meu comandante, carlos sousa, foi a correr para o hospital e andava a fazer de babysitter. são estes gestos que nos consolam, porque não há preço para o que mundo exige de nós”.
depois do internamento, repousou um dia e voltou para este. para que não restem dúvidas, o chefe da equipa, eduardo almeida, 11 anos de experiência, faz-lhe vénia: “é uma verdadeira guerreira, avança, nunca recua perante o fogo”.
no antepenúltimo dia de agosto, depois de “o porco” galgar por montes e serras e de terem evacuado duas povoações, lá o conseguiram amochar. promissora de temperamento, com o rescaldo feito, márcia mantém-se febril, activa, previdente. tal como os seus, adivinham-lhe os pensamentos, as manhas. está no 12.º ano e, se não houver surpresas, daqui a doze meses, já doutorada na cenografia dos prelúdios do drama, espera entrar na universidade para cursar artes visuais.
‘quem dera que chova’
são cinco da tarde quando param para almoçar na mesa de pedra do jardim fronteiriço à casa de uma emigrante. a tensão suportada sem tréguas durante o último mês fez com que o relógio registasse uma brusca paragem no tempo. antónio sérgio, 42 anos, motorista de pesados, não sabe a quantas anda. se é sábado ou quinta-feira. enquanto a anfitriã sobe e desce a escadaria da casa para os mimar com guloseimas, o bombeiro tenta descobrir no céu a bóia de salvação.
o rosto, ao contrário do que é habitual no cronista das infelicidades e da comédia do quartel, está sombrio: “quem dera que chova, que chova a rodos, já nem sei as horas, as minhas coordenadas são o amanhecer e o anoitecer”. salvou muitas vidas, outras não chegou a tempo. feridas que tenta apagar com o humor certeiro que abre a gargalhada ao grupo nos piores momentos.
anda estafado, não consegue adormecer antes das quatro da matina e, quando cai no sono, o toque da sirene, como uma corrente eléctrica, ergue-o e uma luz forte penetra-lhe no cérebro para recordar a sua missão: “levar a tempo uma vida ao hospital, salvar as pessoas e os seus bens do fogo são a nossa prioridade. nesses momentos, é como se não existíssemos, ficamos para trás”.
também esteve no caramulo, onde as labaredas comeram cátia. nele, as fraquezas e as vitórias andam emparelhadas: “reagimos todos de formas diferentes. uns são mais afoitos que outros. se estiver bem-disposto, encaro labaredas de dez metros com naturalidade, há dias em que nem consigo com uma de um metro. depois da situação do caramulo, com a morte da cátia, o cansaço de dias e o sono, bloqueei. e quando, nesse dia ainda, fomos chamados para vila longa, avisei o comando que não conseguia. dormi umas horas e recuperei. andamos nisto e nem temos um psicólogo que nos acompanhe. só aparecem nas tragédias. entretanto, vamos acumulando… mas passa o dia, passa a romaria”.
muda-se de zona. percorre-se a queimada onde passaram os últimos quatro dias, não vá o fogo ter despertado. a chuva teimosa do inverno alimentou terras e engordou a mata, que tapou antigos caminhos. o tojo é mais alto do que os carros de combate, nas picadas mal cabe um jipe. perde-se tempo, até se descobrir um acesso. embate-se na realidade e soltam-se as queixas: a prevenção não funciona, a limpeza não chegou ao labirinto das matas, o fumo que se liberta do chão ainda escaldante asfixia a floresta.
tio antónio anda por ali de enxada, para saltar para a garupa das brasas se ainda as houver e proteger a casa acocorada numa das encostas de cruz. tenta sufocar o remoer da má consciência e resmunga: “só nos lembramos de santa bárbara quando troveja!”. o velhote recupera as imagens, uma a uma. na noite anterior, viu o fogo descer tresloucado das duas igrejas até chegar ao rio vouga, que corre magrinho e sem forças no fundo da encosta. à boleia das folhas dos amieiros, o magano atravessou-o.
pelas onze da manhã, tudo à volta de antónio ardia. e, como a casa de um homem é a sua família, não a largou. juntou-se o povo, de sacholas, enxadas e ramos para dar cabo dele – tudo em vão. pousa o olhar no seu pinheiral moribundo e foge da visão com o sentido nos anos de labuta: “a sorte é que os pinheiros não eram resinosos, a resina é como o álcool, só ardeu a carrasca, se não ninguém os queria comprar. não há memória no povo de cruz de um incêndio assim”.
com a enxada a remexer a terra à coca de alguma brasa, antónio relembra o início da decadência e partilha responsabilidades. por todo o país, de julho a agosto, os incêndios levaram 94 mil hectares de floresta e umas tantas vidas. o molho social e político e uma cultura maldita são os maiores culpados pela destruição.
como se uma baforada de memória amarga o envolvesse, o homem põe o dedo na ferida: “quando ele pegou lá em baixo, junto ao rio, não havia hipótese – nem com os ‘canadaires’, nem para os helicópteros. havia muita silva, caruma e tojo. antes, roçava-se o mato que servia de adubo às terras. agora, com os fertilizantes, ninguém limpa nada. o estado aqui há uns anos deu dinheiro para limparmos os terrenos, mas foi tudo para o bolso, não havia fiscalização”.
leia mais:
parte ii: memórias e suspeitas
parte iii: não há caminhos, nem acessos
parte iv: populações em suspenso
parte v: temperaturas de 600 graus
veja aqui as fotografias