ainda pensou ser jornalista, mas os livros de perry mason levaram-no para direito. a política, no entanto, fez parte da sua vida desde criança e acabou por levar a melhor sobre os tribunais. a sua primeira batalha foi afirmar-se socialista perante o pai comunista. depois disso antónio costa foi deputado, ministro de guterres e de sócrates e, desde 2007, presidente da câmara municipal de lisboa, à qual agora se recandidata. eterno candidato à liderança do ps, é a cozinhar e a fazer puzzles de milhares de peças que encontra alguma tranquilidade.
diz-se que não gosta particularmente de dar entrevistas. é tímido?
tirar fotografias é que é pior do que ir ao dentista. dar entrevistas, não. quanto à pergunta, tenho vergonha de responder… a primeira pessoa que reparou nisso foi um extraordinário tímido, o raul solnado, que foi meu mandatário sénior em 2007 para a câmara municipal de lisboa (cml). foi a primeira pessoa que me disse: ‘agora percebi que você é mesmo tímido. e só percebi isso porque eu também sou’. tenho de vencer a timidez.
estamos no miradouro de são pedro de alcântara, um cenário escolhido por si. as suas primeiras recordações passam por esta zona?
andaram sempre à volta desta zona… fiz aqui toda a minha vida até casar e mesmo depois de casar. em 52 anos, 40 foram vividos nesta zona. lembro-me de brincadeiras no jardim do príncipe real e no jardim botânico. lembro-me de jogar à bola na rua e de fugir à polícia.
na altura era proibido jogar à bola na rua.
sim. lembro-me bem de fugir da polícia. um dia apanharam-me e fui para a esquadra, com uns amigos. mas acabámos por sair antes de os pais nos irem buscar. fazia parte do jogo, era mais para assustar os miúdos do que propriamente para exercer acção repressiva.
os seus pais divorciaram-se muito cedo. não tem imagem deles juntos?
nunca tive. quando eles se separaram eu devia ter um ano. toda a minha memória foi sempre deles separados. fui um menino da mamã, no sentido em que, até aos 14 anos, vivi sozinho com a minha mãe. com os intervalos de fim-de-semana em que ia a casa do meu pai.
tinha a imagem, desde novo, de que tanto a sua mãe – a jornalista maria antónia palla –, quanto o seu pai – o escritor orlando da costa –, eram figuras com um percurso público?
sim. tinha noção que eram pessoas de coragem. a minha mãe, pelos trabalhos que fazia de grande reportagem, era mais visível. em relação ao meu pai fui conhecendo as histórias das prisões, das torturas… tudo isso ajudou-me, enquanto criança, a enfatizar essa ideia que todos temos, de que os nossos pais são heróis.
também se apercebeu cedo do lado politizado de ambos?
sim, claro. era impossível não perceber. fazia parte do dia-a-dia das conversas. desde que nasci o meu pai já não esteve preso, mas cada livro que escrevia era um livro apreendido e havia sempre ameaças da pide. ele viajava muito e havia sempre a dúvida se seria preso na fronteira. depois tínhamos amigos da família que desapareciam e reapareciam. lembro-me bem de estar em casa da minha mãe e ver o manuel serra com marcas de espancamentos, lembro-me de ter ido visitar o carlos aboim inglez quando ele saiu da cadeia e ver o estado de debilidade em que se encontrava… isso não era um universo estranho para mim.
e percebia o que se passava?
na minha família era muito claro: havia os maus e nós éramos os bons. era simples. foi assim que cresci.
quando é que, nessa dualidade, começa a ter discussões com o seu pai e percebe que a realidade não é assim tão linear?
começou com o caso república. e resolveu-se rapidamente. abriu-se aí uma fronteira grande. percebeu-se que os bons tinham diferentes visões sobre o mundo e que a questão da liberdade era mais complexa do que me parecia até aí.
ficou desiludido?
fiquei, claro. acho que esse é um problema que a esquerda ainda não resolveu: a desilusão recíproca que os anos 70 deram a uns sobre a ameaça que alguns constituíam para a liberdade, e também a desilusão que outros constituíram com as suas experiências governativas em que se percebia que a justiça social não se resolve com uma varinha mágica. esse foi um problema que se colocou com uma tal dimensão que ainda hoje não foi superado.
após a descoberta das divergências políticas com o seu pai, as discussões tornaram-se comuns?
houve uma fase em que discutimos bastante. a última grande discussão foi em 1980, aquando do golpe do general jaruzelski, na polónia. lembro-me perfeitamente que estávamos no algarve e discutimos, discutimos, discutimos… e eram para aí umas 4 da manhã quando o meu pai me deu um argumento absolutamente decisivo.
qual?
disse-me: ‘podes ter muita razão, mas já não tenho idade para pôr em causa tudo aquilo em que acreditei e por que me bati desde os meus 18 anos’. acho que este é um argumento imbatível. aí encerrámos as nossas discussões. acho que, a partir daí, devemos ter convergido bastante mais vezes do que aquilo que julgámos.
o seu pai ficou mais socialista?
não, não. ele foi militante do pcp até ao último dia, por muitas dúvidas que admito que tivesse. mas foi. nem eu nem o meu irmão tivemos dúvidas de cobrir o caixão com a bandeira do pcp. seria essa a vontade dele.
acha que ele, apesar das divergências, olhava para si com admiração?
enquanto político, não sei. enquanto filho, acho que sim.
nunca chegaram a falar sobre isso?
não. temos uma relação de grande pudor nas conversas sobre cada um de nós. o meu irmão também herdou essa costela do meu pai. nunca falamos muito sobre nós.
lembra-se do 25 de abril? onde estava?
a minha mãe teve de ir trabalhar e, a partir das 6 da manhã, fui depositado em casa de uma amiga dela, na rua do jasmim, onde fiquei ‘sequestrado’, a querer vir para a rua e a não me deixarem. mas no dia 26 já vim. esse foi verdadeiramente o dia da minha libertação. estive no chiado, onde ainda havia o cerco da pide, e lembro-me perfeitamente de estar na rua do carmo quando houve um disparo e toda a gente desatou a correr.
com quem foi para a rua?
fui com amigos e com o marido de uma amiga da minha mãe, o josé rolim. lembro-me de ter estado, a 27 de abril, em santa apolónia quando chegou o mário soares, de ter assistido à invasão do palácio da independência quando atiraram pela janela as fotos de marcello caetano e américo tomás, estive no palácio foz quando foi embrulhada a estátua do salazar… ao 1.º de maio fui com a minha mãe, juntamente com o sindicato dos jornalistas. para mim foi um ano fantástico. ainda por cima a minha escola, uma secção da francisco arruda que funcionava no conservatório, foi particularmente atribulada nesse ano porque esteve meses sem instalações. as aulas só começaram em fevereiro e eu e os meus colegas achámos que não se podia aprender em quatro meses aquilo que se deveria aprender em nove e por isso votámos um chumbo colectivo.
tinha 13 anos. como é que os seus pais aceitaram essa decisão?
os meus pais ficaram um bocado apreensivos. o meu pai explicou-me como ia sentir muito a falta desse ano, e como ia sentir que ia ficar para trás e que todos me iam ultrapassar. disse que pensasse bem. pensei bem e decidi chumbar. foi dos anos em que mais aprendi em toda a minha vida. e estive muito disponível para tudo o que era manifestações.
e também para outras vivências…
sim, também jogava à bola, namorava, lia muito… essas coisas. mas a vida política ocupou-me bastante esse ano porque era um ano em que bastava sair à rua para assistir a alguma coisa.
nessa altura já sabia o que queria ser?
comecei por querer ser jornalista. mas depois, aos 12 ou 13 anos, comecei a ler o perry mason, que me revelou que a advocacia era uma boa alternativa. achei que era uma espécie de romance policial, mas depois percebi que não.
acaba por entrar na faculdade de direito, da universidade de lisboa, em plena loucura dos anos 80.
beneficiei bastante do que os anos 80 começaram a agitar na cidade. na faculdade, a partir do terceiro ano, só tínhamos aulas à tarde, o que me dava uma enorme disponibilidade para a noite. e eu vivia nesta zona, não foi difícil descobrir o que se passava. mas a noite não era só diversão, aprendia-se bastante.
no entanto, a sua primeira grande bebedeira foi apenas na viagem de finalistas…
apanhei uma grande bebedeira, mas nada que tivessem de me levar ao colo. nunca fui muito dado a excessos, nunca tive essas tentações. a minha geração foi a primeira onde a droga entrou à séria e isso foi uma fronteira: os que ficaram do lado de lá e os que ficaram do lado de cá. fumei muito tabaco, mas relativamente à droga tive uma fronteira grande e com o álcool também. claro que apanhei bebedeiras, mas grande foi essa.
como chegou até à juventude socialista? foi com amigos?
não, foi uma decisão própria, em 76. dos meus amigos, só veio um para a js, que hoje é vice-reitor da universidade de badajoz. era uma altura de extremos, ninguém era da js. para mim, a política fazia parte da vida. agora se pensei que me ia profissionalizar na política? não. aliás, só entrei para a assembleia em 91, já estava a trabalhar. durante muitos anos tive dúvidas se queria a política ou a advocacia. até ter ido para o governo mantive sempre a actividade profissional. aliás, entre 2002 e 2004, antes de ir para parlamento europeu, reassumi a inscrição na ordem e um antigo cliente permitiu-me ver se ainda sabia fazer coisas como petições, julgamentos, recursos… para se poder estar com liberdade na política é preciso ter consciência de que, se correr mal, há outra vida. mas gosto do que estou a fazer, prefiro estar na política com todos os inconvenientes que tem, nomeadamente materiais. isto da política é o contrato a prazo mais precário que existe.
um dos primeiros desafios políticos foi a associação académica da faculdade de direito?
sim. na altura o movimento estudantil era muito partidarizado. quando entrámos – eu, o eduardo cabrita, o josé apolinário, o vitalino canas –, construímos uma js forte, que não existia. acabámos por estar dois anos na direcção da associação.
e foi aí que sofreu a primeira derrota.
tenho uma boa colecção de derrotas. essa foi uma derrota por 11 votos. mas foram anulados, de forma manhosa, 60 votos que me teriam permitido ganhar.
lembra-se da primeira vez em tribunal?
lembro, foi no estágio. estava nervoso. era uma oficiosa do tribunal da boa hora. lembro-me que fiquei chocado entre aquilo que eram as ilusões filosóficas do estudo do direito penal e aquela coisa básica da pequena criminalidade do dia-a-dia. senti-me enganado pelo perry mason.
nunca pensa na vida longe da política?
não me imagino sem qualquer tipo de actividade política, mesmo que não tenha nenhum cargo.
a política é um vício?
não sei se é vício, é uma forma de estar na vida. vício era fumar e já deixei. já vi pessoas que sofrem desgostos tão profundos que ficam alérgicos à política. não imagino que isso me aconteça.
pode ficar no lugar de comentador.
essa é uma experiência nova de que tenho gostado.
quem são os comentadores que acompanha?
vários. o professor marcelo e os artigos do miguel sousa tavares, em regra, não perco.
se não perde o professor marcelo quer dizer que não vê o engenheiro sócrates?
às vezes gravo.
como vê o seu regresso à vida política?
não sei se se trata de um regresso porque não sei se houve uma saída. do que o conheço não o vejo a desligar-se da actividade política como quem muda de planeta. não o vejo a viver noutro planeta.
seria um bom candidato do ps para a presidência da república?
pergunta-me se ele tem qualidades para exercer essa função? tem muitas das qualidades para exercer essa função e as que não tem certamente a idade e o tempo lhe darão.
e josé sócrates seria melhor ou pior candidato do que antónio costa?
(risos) acho que esse problema não se colocará…
foi apoiante de sócrates e do seu governo até ao último minuto, mesmo quando muitos já tinham voltado costas. porquê?
acho que a estratégia fundamental do governo estava certa. o problema fundamental do país é um problema de qualificação dos recursos humanos, da gestão, da capacidade tecnológica, da administração pública, das infra-estruturas… o erro fundamental foi ter havido a ilusão de que isto se fazia num curto prazo. acho que isso foi fatal, para além de uma conjuntura desfavorável e que teve um efeito sobre o governo sócrates idêntico ao que teve sobre todos os governos europeus, com excepção da alemanha. este governo sempre ignorou que a causa estrutural desta crise tem a ver com a arquitectura da zona euro. as causas específicas da crise portuguesa não têm natureza orçamental, mas económica. temos de corrigir o diagnóstico para acertar na terapia e isso implica renegociar o memorando e adoptar em portugal uma estratégia económica que assente na qualificação e não na ideia de que vamos recuperar produtividade através do empobrecimento colectivo.
as eleições na alemanha podem alterar o actual cenário?
acho que necessariamente irão alterar alguma coisa, mas não sei se o suficiente. não é aceitável uma união europeia que dependa da vontade de um único país. isso é o contrário de uma união. as novas lideranças políticas na europa aceitaram uma posição subalterna relativamente à alemanha e isso é inaceitável. este é o primeiro governo que se apresenta em bruxelas numa posição subalterna.
nesse aspecto durão barroso tinha obrigação de ter outro papel?
a história o dirá, mas custa-me a acreditar que durão barroso não tenha tido outro papel. e que não tenha podido fazer mais por causa deste governo. sempre que pude testemunhar a sua actuação, vi que ele nunca se esqueceu de que era português. agora, não há presidente da comissão que nos valha com o governo que temos.
continua a defender que a solução seriam eleições antecipadas?
acho que não há solução com o actual governo. se para mudar de governo é necessário haver eleições antecipadas…
depois da decisão de cavaco silva, acredita que essa hipótese ainda existe?
não sei. o que sei é que não acredito nesta solução.
o presidente da república está excessivamente colado ao governo?
precisávamos de um pr que exercesse plenamente as suas competências constitucionais. que é aquilo que o actual pr nem sempre tem feito.
antónio josé seguro deveria ter aceitado negociar com passos?
acho que a direcção do ps fez o que deveria ter feito, deu as explicações que devia ter dado e é um assunto ultrapassado.
em 2007, disse que deixava o governo para fazer em lisboa o que era necessário fazer. conseguiu?
nunca se faz tudo aquilo que se quer fazer, mas fez-se muita coisa. este jardim, em 2007, estava fechado há três anos. a obra tinha paralisado por falta de pagamento. uma das prioridades foi conclui-la. olho para trás e tenho motivos para ter satisfação naquilo que fiz. se não tivesse não me estava a recandidatar.
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