‘O Colégio Militar ajudou-me a ser homem antes do tempo’

No dia em que começa a campanha oficial para as eleições autárquicas, o SOL divulga na edição online as entrevistas de António Costa e Fernando Seara publicadas nas edições da revista Tabu a 30 de Agosto e 13 de Setembro, respectivamente.

fale-nos da sua vida. quais são as primeiras recordações que tem da infância em viseu, onde nasceu?

era um menino mimado. fui criado com a ajuda de duas tias solteiras que faziam tudo o que queria. tinha umas empregadas. se me apetecia comer uma empada à meia-noite lá iam elas buscar.

consta que não sabia fazer a cama nem tomava banho sozinho.

a primeira vez que tive que fazer uma cama e apertar os atacadores foi quando cheguei ao colégio militar [cm] e me vi sozinho, em outubro de 1966. não tenho nenhuma vergonha de o dizer.

como foi?

acordei às seis e meia da manhã, quando tocou a alvorada, e pedi ao do lado para me apertar os atacadores. depois treinei.

por que é que o mandaram para lá?

tenho dois lados da família: um do direito e outro militar. o lado militar queria que eu fosse o herdeiro do meu tio almirante reboredo silva, que era chefe de estado-maior da armada.

lembra-se da despedida dos seus pais quando arrancou para o cm?

lembro-me de a minha mãe deixar cair uma lágrima. a minha mãe guardou todas as cartas que lhe escrevi do colégio numa arca imensa. aqui há algum tempo, chegou-se ao pé de mim e disse-me: ‘estão ali as cartas todas que me escreveste durante o tempo do colégio’. não sabia que as tinha guardado.

e já as leu?

já.

que rapaz era aquele?

um rapaz com saudades da família que punha na carta os afectos que lhe faltavam.

era sempre a sua mãe a responder?

não. o meu pai respondia-me uma vez por semana. era sempre chamado porque tinha duas ou três cartas por semana. era gozado por causa disso, mas depois perceberam que não podiam gozar porque era dos poucos que ficava no colégio aos fins-de-semana. obrigaram-me a ser adulto demasiado cedo e depois não fui adolescente por causa do 25 de abril. isso, porventura, ajuda a explicar eu ser um extrovertido tímido, a gostar de escrever, a gostar de escrever sob pseudónimo.

o que escreveu sob pseudónimo?

muitas coisas, até análise política.

onde?

em jornais de referência. o diabo tem histórias de agapito pinto, que proliferaram. o agapito pinto eram várias pessoas, era escrito a várias mãos.

como foram os tempos no colégio?

sábado à tarde via sair os meus colegas e eu ficava ali sozinho durante o fim-de-semana. no domingo, com 10 anos, comecei a ir ao estádio da luz, de farda castanhinha e botões a brilhar, porque os meninos do cm tinham entrada gratuita. com 25 tostões, entrei para o eléctrico ali no largo da luz e fui ver pela primeira vez o jardim zoológico. ia ao estádio de alvalade de vez em quando, na altura havia uma pista de ciclismo. tinha aulas de cavalo nas quintas onde hoje é o colombo. foi um tempo da minha vida muito rico. com 14, 15 anos conheci sozinho lisboa.

a paixão pelo futebol e pelo benfica começa só aí?

a pergunta pressupõe que aos dez anos já se vai tarde para ter paixão pelo benfica. todas as idades são certas para alguém se tornar benfiquista. foi no cm que aprendi a fugir do colégio à noite para ir ver os jogos internacionais do benfica correndo o risco de ser expulso. lembro-me do que um saudoso benfiquista, artur semedo, dizia: ‘o benfica nunca perde. de vez em quando, é que não ganha’.

nunca ia a casa, em viseu?

fui a primeira vez em dezembro de 1966. o tenente-coronel pezarat correia, que era o comandante do corpo de alunos, deu-me o bilhete do sud-express e disse-me para apanhar o eléctrico, sair em sete rios, apanhar o metro até ao rossio, sair ao pé da suíça, mudar para o autocarro da carris de dois andares que ia para santa apolónia e apanhar o comboio. em mangualde, os meus pais estavam à minha espera. como era um menino no meio de um comboio de seis carruagens, as pessoas tinham pena de mim e ofereciam-me comida. comi as melhores chouriças, queijo da serra, marmelada…

no colégio experimentou teatro?

sim, numa récita. há grandes nomes do teatro e da música que vieram do cm, como o luís esparteiro, o josé fanha, o rão kyao…

nunca ponderou uma carreira artística?

havia a hipótese do teatro ou do desporto e eu preferi o futebol e o basquetebol. quando voltei para viseu fui capitão de equipa do liceu nacional de viseu na primeira e única vez até hoje em que a escola foi campeã nacional de basquetebol. a determinada altura, os meus pais proibiram-me de enveredar pela prática desportiva constante. disseram-me: ‘ou vais tirar direito sendo bom aluno ou és desportista profissional. e não és desportista profissional porque nós não deixamos. portanto, tens que ser bom aluno’.

há uns tempos fez uma ‘perninha’ numa novela da tvi. como é que o convenceram?

disseram-me que precisavam de uma pessoa que fizesse de presidente de câmara e eu disse que não me importava. deram-me um textozinho e eu alterei-o todo. até julgava que me iam obrigar a repetir a cena.

mas mudou porquê?

o texto era tão pequenino que pus três ou quatro buchas. aumentei a minha participação! o realizador disse: ‘sr. dr., isto saiu tão bem assim, vai ficar à primeira!’.

o que queria ser quando era criança?

queria ser bombeiro. ao lado da casa dos meus avós, onde nasceu o rei d. duarte, havia os bombeiros voluntários de viseu. ia sempre à janela quando tocava a sirene e via-os sair. depois fui para o cm porque a família acreditava que ia ser um bom marinheiro. a certa altura quis ser um advogado de viseu, como o meu pai e, portanto, fui para o liceu nacional de viseu, onde fui colega da actual pgr, joana marques vidal. o meu pai ficou toda a vida à espera, com um gabinete para o filho fernando. foi a grande referência da minha vida. e a forma como morreu ajuda-me a ultrapassar todas as angústias. esteve morto e recuperou, esteve numa cadeira de rodas e voltou a andar, todos os dias lia o dn para ver notícias sobre mim, aprendemos a falar ao telefone com as pausas, tal como se tivesse audição. o meu pai esperou por mim para morrer.

como assim?

teve um avc e ficou em coma. chegaram-me a dar os pêsames a mim e à minha mãe. fez reabilitação, fisioterapia, mantivemos o escritório fingindo que tinha que continuar a trabalhar, esteve anos assim. um dia à noite, em junho do ano passado, a minha mãe ligou-me a dizer: ‘o pai está pior’. às cinco da manhã levantei-me e fui para viseu em excesso de velocidade. entrei no quarto dele às oito da manhã, olhou para mim, disse: ‘pronto, já posso ir’. fechou os olhos e morreu.

seguindo as pisadas do seu pai no direito, acaba por se envolver na política, inicialmente no cds. como?

o professor adriano moreira convidou-me para assistente dele quer no instituto superior de ciências sociais e políticas quer na então universidade livre. foi através da proximidade com ele que cheguei ao cds. primeiro como secretário-geral adjunto do professor josé vieira de carvalho, e depois como secretário-geral do professor adriano moreira.

antes disso nunca tinha pensado na política?

sou de uma turma de direito que tem dois primeiros-ministros [durão barroso e santana lopes], procuradoras-gerais-adjuntas… entrámos na faculdade antes do 25 de abril, vivemos a data, vivemos a ruptura inerente ao 25 de abril – quando uns foram para o mrpp, outros para a uec e outros, como eu, para as juventudes sociais-democratas, socialistas… de repente, acabo o curso, há um concurso público para assistentes da faculdade de direito e sou escolhido. vou trabalhar com a professora isabel magalhães colaço e com o professor joão castro mendes. mas de repente sou chamado para prestar serviço militar. fui dos poucos da minha geração que não utilizou a subtileza pós-25 de abril para passar à reserva territorial.

porquê?

por que o meu tio-avô da armada, que tinha sido meu encarregado de educação no colégio militar, quando lhe disse que ia passar à reserva, deu-me um sermão de três horas e não deixou. acabei a prestar serviço numa turma especial de jovens licenciados e doutorados – na altura estava no 6.º ano de direito. fiz a recruta nas caldas da rainha. estive 28 meses no serviço militar, afecto ao órgão de soberania onde aprendi tudo o que sei sobre poder, autoridade e influência, chamado conselho da revolução, dentro de uma estrutura própria que tinha acabado de ser criada: a polícia judiciária militar. conheci tudo. estou num tempo histórico do mundo: o confronto americano-soviético. nas vésperas de um filme que vi ao vivo: a ocupação da embaixada americana em teerão e a chegada ao poder dos islamitas. o tempo do serviço militar ajudou-me muito. ajudou-me a conhecer os homens que fizeram abril.

quem admirava mais?

tenho dois que não esqueço: o coronel sousa e castro e o general pezarat correia. fui conhecendo-os e fui sentindo o sentido ético da sua missão. o general pezarat correia tinha sido meu comandante do corpo de alunos no colégio, onde aprendi a ser homem sendo menino. lamento que este governo extinga assim de repente o cm. a dra. berta cabral [secretária de estado da defesa] não percebeu o que é o cm. a questão da igualdade de género não se põe. o cm é uma instituição de referência no ensino em portugal.

deixa de ser uma referência se tiver raparigas?

a marca do cm é essa mesma. o grande problema em portugal são as chamadas lógicas homogéneas. o cm tem um sentido e devem-se criar condições financeiras para se manter e essas condições foram propostas. como presidente de câmara, jamais permitirei que qualquer terreno afecto ao cm seja desenvolvido para qualquer projecto imobiliário.

por que razão acha que o governo quis ir em frente?

porque vivem num tempo de igualdade de género que é politicamente correcta.

pode ser reversível?

será reversível. tenho a certeza. lutaremos por isso.

voltando ao cds. como se deu a troca para o psd?

fui secretário-geral do cds e deixo de o ser em 1988, na sequência das eleições que deram a primeira maioria absoluta ao professor cavaco silva. deixei de ser militante do cds no final da década de 80 porque entendi que devia afastar-me da política e do cds. não queria estar demasiado envolvido em questões políticas. queria dedicar-me à advocacia e à universidade. em 1999, sou convidado pelo dr. durão barroso para ser candidato independente nas listas de deputados por viseu. é na sequência de ser eleito deputado que ingresso no psd. e depois convidam-me a ser candidato a sintra.

recorda-se do dia em que venceu a câmara de sintra?

recordo-me muito bem. foi uma surpresa. nunca mais me esqueço. na noite eleitoral, quando tive noção que tinha ganho, fugi de toda a gente e disse para mim mesmo: ‘mudou a tua vida por completo’. chovia aquela chuvinha miudinha de sintra – foi aí que percebi a humidade permanente de sintra. sorrateiramente fui tomar um galão quente e escuro, à pastelaria tirol. quando voltei havia êxtase total. eu estava em estado de choque. toda a minha vida tentei não me dedicar em exclusivo à política.

a sua saída de sintra lançou o caos. marco almeida não teve o apoio do partido e agora há sondagens que dizem que qualquer um pode ganhar. como viu esta situação de o seu vice-presidente não ter o apoio do psd?

não vou emitir nenhuma opinião sobre as questões internas. não tive nenhuma palavra no processo de escolha de qualquer candidatura em sintra. estive apartado, de propósito e conscientemente, de todas as questões de sintra.

e do ponto de vista pessoal não é constrangedor?

mantenho óptimas relações pessoais com todos os candidatos à presidência da câmara de sintra que têm hipótese de ganhar.

há quem lhe aponte arrogância e sobranceria.

não sou arrogante, mas…

mas gosta de tirar os outros do sério?

sim. sabem porquê?

por defesa?

claro. quem viveu sozinho entre os 10 e os 15 anos, ai dele que não tivesse esse meio de defesa. muitas vezes, no comboio, era confundido com um groom, os pequenos criados que havia à porta dos restaurantes. as pessoas diziam-me: ‘leva-me lá esta mala até às escadas e toma lá 25 tostões’. o que é que se faz? fiz uma vez, duas. à terceira, antecipei-me e antes que me chamassem groom, dizia que era do colégio militar. não é sobranceria, é defesa.

e quando chegava a casa dos pais, chorava?

nunca chorei em frente aos meus pais por estar no cm. chorava sozinho.

quando passa em frente ao cm tem uma sensação boa ou má?

imensamente boa. ajudou-me a ser homem antes do tempo.

isso é bom?

para mim foi. não sei o que dizem os psiquiatras e os psicólogos.

nunca foi saber?

não. foi um tempo difícil, mas nas dificuldades, podemos aprender a vencê-las. nas angústias, podemos ultrapassá-las. nas necessidades, podemos derrubá-las.

falou da relação especial com o seu pai. como é a relação com o seu filho?

tenta ser igual à que o meu pai teve comigo. ele agora está em luanda. sou pai de um dos filhos emigrantes de portugal.

seguiu o conselho de passos coelho?

não me fale disso. dizer-se que alguém vai para fora para seguir o conselho de passos coelho é miserável. o meu filho seguiu o caminho que a consciência dele determinou. não tem nada a ver com os governantes, tem a ver com a vida. foi ganhar quatro vezes mais do que ganha cá o pai como presidente da câmara de sintra. o pai gere 400 mil pessoas e um orçamento global superior a 500 milhões de euros. o pai ganha 2.200 euros, menos que a terceira secretária de um presidente de um banco em portugal. evidentemente, eu tenho suporte económico. investi o que tinha que investir na formação do meu filho. quero continuar a investir o dinheiro o que for necessário para os meus netos terem a mesma educação.

como avô não faz racionamento nenhum.

um avô é pai com mel. dá tudo aos netos. ‘avô, quero chocolate’. o avô compra chocolate. ‘avô, quero croquetes’. o avô compra croquetes. ‘avô, quero andar cinco vezes no carrinho’. o avô compra cinco viagens no carrinho. depois o avô compra amendoins para dar aos macacos no jardim zoológico e quase é preso porque agora não se pode dar comida aos macacos! vende-se amendoins no jardim zoológico, mas não se pode dar aos macacos!

isso aconteceu mesmo?

aconteceu. ‘ó sr. dr., ó sr. dr.. , não pode, não pode’. eu tirei o boné, ele olhou para mim ‘ó sr. dr., agora não se pode dar amendoins’. ‘então, mas vendem-se!’. ‘vendem-se mas é para os senhores comerem’. ‘ó meu caro amigo, tudo mudou em portugal, até amendoins e macacos!’.

parte i: ‘sofro muito mais com o meu benfica do que com a política’

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