Mário Laginha: ‘É importante dessacralizar a guitarra portuguesa’

Ao longo da sua carreira, o pianista de 53 anos tem explorado os mais diversos campos musicais, mas só agora traz a guitarra portuguesa para a sua música. O novo trio, que conta ainda com um contrabaixo, pode ser escutado hoje, dia 18, em primeira mão na Culturgest, e já há planos para lançar um…

como surgiu este projecto?

partiu de um convite do miguel lobo antunes para tocar na culturgest, dando-me uma espécie de carta-branca para fazer o que quisesse, mas mostrando interesse em que fosse qualquer coisa nova. entusiasmei-me e comecei a pensar numa formação diferente da que toco habitualmente. como conheci, há quatro anos, o miguel amaral, um guitarrista de guitarra portuguesa com quem gostei muito de tocar, comecei a achar que era uma oportunidade para escrever música com uma formação que incluísse a guitarra portuguesa, mas que não tivesse nada, à partida, que ver com fado.

é mais próximo então do seu universo?

é música instrumental e a guitarra puxa, naturalmente, a minha personalidade musical para lados diferentes. é o elemento novo que me leva a experimentar coisas que não teria feito sem este instrumento, mas acho que as pessoas que conhecem melhor o meu trabalho vão reconhecer a minha identidade.

há quanto tempo queria trabalhar com a guitarra portuguesa?

há uns anos, eu e a maria joão chegámos a tocar com o ricardo rocha, um grande guitarrista português. mas ele não gosta muito de misturas e acabou por não se aprofundar essa relação. desde essa altura que penso numa formação com guitarra portuguesa, até porque, um bocado por todo o mundo, o jazz é contaminado pelas culturas musicais locais. para mim é um mistério que a guitarra portuguesa não tenha sido utilizada mais cedo no jazz.

sente-se a inovar?

a experiência tem de ser feita. não consigo olhar para o futuro mas, mais cedo ou mais tarde, a guitarra portuguesa há-de entronar as suas capacidades para além do fado. e o jazz pode ter essa generosidade de ser uma coisa aberta.

de onde vem o fascínio por esta guitarra?

gosto verdadeiramente da sonoridade que tem e acho que casa maravilhosamente bem com o piano e o contrabaixo. mas o fascínio vem dos tempos da adolescência. tenho um irmão mais velho e era ele, normalmente, que comprava os discos lá em casa. sempre ouvimos muito carlos paredes. nessa altura não gostava de fado, mas depois a coisa aconteceu aos poucos. comecei a achar graça a um ou outro cantor e, de repente, já não fazia sentido dizer que não gostava de fado. agora já identifico como algo do que é ser português.

foi difícil compor para um instrumento que não lhe é tão familiar como o piano?

há um desconhecimento e, quando comecei a escrever, tive de me relacionar com isso. é um caminho que se faz indo à procura. à medida que ia compondo mostrava ao miguel e ele dizia se era possível ou não. mas também ajuda muito trabalhar com quem gostamos.

é um desafio sair da sua zona de conforto?

para mim é fundamental. tenho essa curiosidade por mundos que não são o meu. sinto-me impelido a experimentar e, às vezes, é um risco. mas é importante dessacralizar a guitarra portuguesa. às vezes somos tão puristas que não queremos mexer naquilo que já está convencionado, mas é óptimo que se mexa e se experimente. oiço um guitarrista como o josé manuel neto a acompanhar o camané e é absolutamente esmagador. ele toca aquilo dentro de uma linguagem que tem uma longa tradição, mas inovou e explorou novos caminhos. tal como o pedro caldeira cabral e o ricardo rocha, que recuperaram a ideia do instrumento a solo. isso tem de continuar.

o projecto vai ficar só pelo palco?

não, vamos gravar e o estúdio até já está marcado para o final do mês. planeámos tudo com calma para o caso de querermos mudar alguma coisa depois do concerto. tocar ao vivo é o sítio onde uma pessoa percebe melhor a música, a sua respiração.

o miguel amaral está na casa dos 20 anos e o mário na dos 50. esta diferença geracional também influencia a música?

apesar de uma pessoa sentir sempre o pulsar das gerações, quando gosto de tocar com alguém sinto-me impelido para o fazer independentemente da idade. nem me lembro disso. quando gravei o último disco com a maria joão, um dos músicos que convidámos, o acordeonista joão frade, tinha 28 anos e não me tratava por tu. eu estava a ficar doente e disse-lhe que não conseguia fazer música com ele assim.

incomoda-o que o tratem por você?

já me estou um bocado nas tintas, mas prefiro que me tratem por tu. sempre vi a nossa passagem pelo tempo em três fases: a primeira em que toda a gente nos trata por tu, a segunda, em que de vez em quando alguém nos trata por você e nos soa muito mal, e a terceira em que muita gente nos trata por você e quando alguém nos trata por tu soa-nos mal. ainda não cheguei lá e espero nunca chegar.

alexandra.ho@sol.pt