Mario Vargas Llosa: Em busca do homem puro

“Era um homem pequeno e muito magrinho, económico e trabalhador que, lá em Yapatera, [povoação de negros e mulatos] onde nasceu, e em Chulucanas, onde fez a primária, nunca calçou sapatos.” Aos 55 anos, o cholo (crioulo) Felícito Yanaqué, dono de uma empresa de transportes, habitante da pequena cidade de Piura, no noroeste do Peru,…

assim, quando começa a receber cartas de extorsão, assinadas com o desenho de uma aranhita e cada vez mais ameaçadoras, yanaqué, pequenino mas teso, não dá o braço a torcer. nem mesmo quando os supostos mafiosos sequestram mabel, a sua voluptuosa amante. enquanto isto, em lima, o rico e octogenário empresário ismael carrera casa-se com a sua muito jovem criada, atiçando a fúria dos seus filhos “hienas”, os gémeos miki e escobita. por seu turno, fonchito, filho de don rigoberto (ambos vêm de romances anteriores, tal como dona lucrecia, o sargento lituma e os inconquistáveis), aparece-lhe o diabo, que se chama edilberto torres e é, afinal, peruano. a imaginação de mario vargas llosa (n. 1936) continua em forma.

correm dois enredos paralelos em o herói discreto, o mais recente romance do escritor hispano-peruano, nobel da literatura em 2010. a primeira tradução é a portuguesa e óptima, ou não fosse assinada por cristina rodriguez e artur guerra. llosa inspira-se numa história real e produz um vintage. recupera personagens, cruza-lhes as histórias lá mais para o fim do livro, mas põe tudo no presente e impregna-o com as preocupações expostas no ensaio a civilização do espectáculo (quetzal, 2012). ali, já se insurgira contra a cultura-mundo e o embotamento que provoca nos indivíduos, privando-os “de lucidez e livre arbítrio”, como se fossem meros cães de pavlov.

em contraponto, llosa, um dos raros liberais sul-americanos, continua a ficcionar a rectidão de alma e a enaltecer a rebeldia do cidadão comum, pequeno david em luta contra o golias da corrupção. segundo a moral das fábulas de felícito e ismael, ainda é possível a hombridade vencer a astúcia, a honestidade dobrar a ganância ou a lealdade superar a corrupção. o herói discreto é um romance “ético até às unhas dos pés”. e bastante divertido.

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