Chimamanda Ngozi Adichie: Para escrever temos de sujar as mãos

A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie prova que é a nova estrela da literatura africana com Americanah, um romance sobre raça, emigração, amor e… penteados.

americanah é um retrato do mundo de ifemelu, estudante emigrante nigeriana que cria um bloque anónimo (inteligentíssimo e hilariante) sobre as questões da raça nos eua, antes de decidir regressar ao país natal e a um primeiro amor. após o sucesso de meio sol amarelo (orange prize 2007; a adaptação ao cinema estreou há pouco no festival de cinema de toronto), chimamanda ngozi adichie confirma o vaticínio da revista new yorker, que a colocou entre os 20 mais importantes escritores actuais na casa dos 40 anos. muito segura de si e talentosa, a escritora nigeriana usa a ficção realista e a ironia como alertas provocatórios contra os preconceitos raciais e em defesa da condição feminina.

os livros garantem-lhe a afirmação da sua identidade pessoal?

não creio, mas proust também não acertou quando disse que ‘o eu que escreve os livros é diferente do eu que vive no mundo’. a verdade está algures no meio; este romance tem uma parte que é de origem biográfica, e outra, que não o é de todo. tenho imenso para dizer e quero mudar o mundo, mas, por outro lado, sou uma pessoa muito privada.

atribui-se à sua ficção uma forte mensagem política, porque aborda temas fracturantes: a raça, áfrica, a nigéria, a emigração, a condição feminina. não teme que isso ofusque a apreciação estética?

a arte está sempre impregnada de história e de política. há escritores que tentam contrariá-lo, mas é impossível separar estas dimensões. eu faço ficção realista, logo, escrevo também sobre o modo como as nossas vidas são afectadas por decisões tomadas por alguém, algures. para mim, contar histórias é conjugar estética com política e com muitas outras coisas que se fundem e, depois, só podem ser avaliadas em conjunto. ser escritor significa estar sempre um pouco à parte. sinto-o desde criança. mas, para escrever, temos de sujar as mãos. sobretudo se queremos tratar da realidade, e não criar meras fantasias.

entramos no mundo interno das suas personagens através de pequenos detalhes privados, mas, ao mesmo tempo, triviais…

demasiada interioridade cansa-me. gosto de livros que nos fazem mergulhar por completo na vida das personagens. é por isso que dickens ou os realistas russos me interessam muito mais do que os autores contemporâneos.

no caso de americanah, para falar de identidade e questões raciais, explora a relação com os cabelos encarapinhados ou o cenário de um cabeleireiro num subúrbio de princeton. e é como se a noção de raça surgisse do exterior para o interior.

a raça é definida pelo aspecto físico. não tem nada a ver com biologia: é uma questão sociológica. aprende-se através do comportamento dos outros em relação a nós. o meu irmão mais novo tem a pele muito clara. temos os mesmos pais, mas, por exemplo na áfrica do sul, eu seria ‘negra’ e ele ‘coloured’ (de origem mista). ou seja, a raça é algo que não se escolhe: é-nos imposta. isso é evidente nos eua. ifemelu escreve-o no blogue: a raça importa por causa do racismo – que, por sinal, é fortíssimo dos afro-americanos para com os imigrantes africanos.

como é que o livro foi recebido na nigéria?

em lagos [cidade-cenário do romance e residência de adichie], é vendido até nas ruas, junto aos carros: ‘americanah!’ houve muita gente que se identificou e o achou muito divertido.

e nos eua?

deve haver muita gente que o odeia e se pergunta: ‘como é que ela se atreve a escrever sobre os nossos problemas?’. os americanos não gostam de falar sobre raça. mas, ok, eu não tenho de ser amada por toda a gente…

também deve haver muitos americanos, brancos e negros, que riram à gargalhada…

sim, a ironia é uma arma importante.

ifemelu diz que, para muita gente, obama não é negro: é birracial, multirracial, preto-e-branco, tudo menos apenas negro. a questão racial tem determinado o desempenho do presidente?

o congresso tem-lhe dificultado cem vezes mais a vida e com a única intenção de o deitar abaixo. é claro que a questão da raça é crucial. à parte bill clinton, a américa nunca havia tido um presidente tão inteligente, tão consciencioso, tão humano, tão esforçado. eu gostava que ele fosse menos simpático com toda a gente, porque é bem mais importante ser-se verdadeiro do que amado. obama é a prova de que os negros na américa têm sempre que provar as suas capacidades não sei quantas vezes mais do que os outros.

na verdade, ifemelu é também alguém que se sente de uma maneira «por dentro» e é tomada por outra, diferente, «por fora». a tia uzu diz-lhe: «limita-te a ser tu mesma.» e ela responde: «como é que posso ser só eu mesma? o que quer isso dizer?»

eu sinto-me segura em qualquer parte do mundo porque estou totalmente enraizada na minha família e na nigéria, um país que eu amo imenso e em cujo futuro eu acredito. depois de viver 13 anos nos eua, ifemelu decide regressar porque lhe falta alguma coisa. o romance é sobre essa noção de casa e sobre como nos tornamos diferentes em diferentes locais. é também sobre o amor e sobre mulheres que traem as expectativas de género: rejeitam os modelos tradicionais, não querem competir para conquistar os homens ou manipulá-los… se calhar, é por isso que muitas leitoras, sobretudo as africanas, não gostam de ifemelu. e é por isso que eu a adoro.

filipa.melo@sol.pt