agora, como há um mês, reid apontou baterias em especial contra o senador republicano ted cruz, um dos líderes do movimento ultraconservador tea party, próximo de sarah palin, e um dos homens que mais se esforçou por evitar uma solução de compromisso para resgatar os eua da paralisia governamental e de um inédito incumprimento perante os credores. um esforço tal que entrou mesmo para os livros de recordes: foi também em setembro que cruz discursou 21 horas sem parar para adiar uma votação que se adivinhava ganha para os democratas.
em discussão nessa palavrosa sessão do senado estava nada menos que o obamacare, o diploma legal na origem da mais recente crise política norte-americana. para travar a reforma do sistema de saúde proposta por obama, e que de resto começou a entrar em vigor, por fases, no dia 1, os republicanos utilizaram duas ‘bombas atómicas’. a primeira foi a proposta pela câmara dos representantes (dominada pela oposição) de um orçamento federal sem verbas para o dito obamacare, prontamente chumbado pelo senado. sem o documento, a administração pública foi forçada a fechar portas e a limitar-se aos serviços mínimos: o shutdown governamental que dominou as manchetes do outro lado do atlântico. na estatal nasa, por exemplo, estiveram apenas a funcionar os serviços essenciais à manutenção das missões em curso e à sobrevivência dos astronautas.
a segunda arma foi apontada esta semana com a oposição republicana à alteração do limite federal de endividamento dos eua, impedindo o estado de pedir mais dinheiro emprestado para cumprir as suas obrigações. sem essa alteração, a 75.ª na história norte-americana, o país ficaria mais perto do incumprimento e os mercados financeiros globais à beira de um novo colapso. mais uma vez, cruz, que tem ambições presidenciais, liderou a oposição a obama e também à liderança republicana moderada de john boehner, exigindo a abolição do obamacare.
e o que é exactamente o obamacare? é a resposta de obama a uma das mais problemáticas peculiaridades norte-americanas: a ausência de um serviço nacional de saúde, que deixa mais de 50 milhões de pessoas sem assistência médica. mas a reforma que começou este mês a ser implementada não é certamente comparável ao sns português ou a um qualquer sistema europeu, onde os cidadãos têm acesso a cuidados clínicos em hospitais públicos a preços reduzidos. na verdade, o obamacare é um conjunto de várias leis que passam apenas a regular o mercado liberalizado da saúde nos eua. como referia a britânica the economist, “não é nem a conspiração esquerdista que os republicanos dizem ser, nem é a reforma ambiciosa que os democratas desejaram”.
o ponto fulcral da reforma é que todos os norte-americanos passam a ser obrigados a ter um seguro de saúde. desde 1 de outubro, vigora um período de adesão voluntária ao sistema. em 2014, quem permanecer de fora terá de pagar uma multa. os que não tiverem dinheiro para aderir a um seguro vão receber subsídios para o fazerem. para os republicanos, porém, esta obrigatoriedade é tida como uma inadmissível intromissão do estado na vida de cada cidadão.
o problema é que, nos eua, a subscrição de um seguro de saúde não depende só da vontade de cada pessoa – ou do estado. os custos, por um lado, e o boicote das seguradoras a doentes crónicos, por outro, fecham a porta a grande parte dos norte-americanos.
um dos pontos-chave é por isso a proibição, a partir de 2014, da recusa de um seguro por motivos de saúde. até aqui, quem tivesse cancro ou apenas hipertensão ouvia um ‘não’ ou via o seguro à distância proibitiva de centenas de milhares de dólares. as seguradoras tinham assim carta-branca para fazer dinheiro com as mensalidades dos segurados saudáveis e pouco ou nada gastar com pacientes onerosos. consequentemente, e caso não tivesse já um seguro de saúde nem dinheiro para pagar tratamentos urgentes, um norte-americano com uma doença grave poderia estar condenado à morte.
será também proibido às seguradoras discriminar clientes conforme o sexo. a idade e o vício de fumar vão continuar a penalizar os norte-americanos na hora de aderir a um seguro de saúde, mas essa penalização passa a estar tabelada para evitar abusos.
para os republicanos, são medidas que ameaçam a viabilidade do sector empresarial da saúde e que vão fazer subir os preços dos seguros para os norte-americanos saudáveis. o estado republicano da geórgia, por exemplo, estima que os preços possam triplicar. o governo norte-americano, citando um estudo da rand, argumenta que as oscilações extremas ficarão restritas a estados onde um grande número de pessoas doentes era excluída dos sistemas de saúde, mantendo os preços dos seguros artificialmente baixos para os mais saudáveis.
é para prevenir uma temida bancarrota das seguradoras, que a partir de 2014 são forçadas a abrir as portas para doentes, grávidas e fumadores, que outra peça legislativa do obamacare obriga todos os norte-americanos saudáveis que ainda não têm seguro a aderirem a um. deste modo, as seguradoras também vão ter um acréscimo de clientes que poucos recursos consomem e que novos lucros garantem.
a subsidiação daqueles que não têm dinheiro para um seguro deveria ser feita através do medicaid, um sistema público de saúde para os mais pobres. esta ajuda seria decidida estado a estado, com washington a prometer pagar as contas a meias – e a ameaçar com cortes no financiamento federal em caso de oposição. no entanto, vários estados da américa republicana rebelaram-se contra a decisão e conseguiram o apoio do supremo tribunal, que entende que cabe a cada unidade federal gerir os sistemas estaduais. como resultado, alguns milhões de norte-americanos poderão continuar sem seguro de saúde em 2014.
a oposição a obama justifica que os custos da expansão do medicaid podem afundar tanto as contas estaduais como as da federação, criando um problema ainda maior.
os empregadores também são afectados. a partir de agora, todas as empresas com 50 ou mais funcionários vão ter de oferecer seguros de saúde aos seus trabalhadores. em resultado, alertam os republicanos, muitas vão despedir pessoal ou dividir-se entre várias entidades menores para contornar a lei.
mas mesmo sem os seus impactos indirectos na economia, o obamacare é colossal ao mexer num sector que consome 18% do pib dos eua. muito dinheiro em jogo, parte do qual injectado nos cofres republicanos através de escritórios de lobistas.
e é um diploma de tal forma complexo que, em setembro, uma maioria dos norte-americanos inquiridos admitia não saber sequer como funcionaria o obamacare. em agosto, uma sondagem mostrava que 44% dos inquiridos pensava que o obamacare tinha sido abolido. aqui, a responsabilidade é não só da imprensa, onde a polarização entre apoiantes e opositores do governo de obama alimenta a desinformação, como também é de alguns governos estaduais. enquanto a democrata nova iorque gastou 40 milhões de dólares em campanhas de informação sobre a reforma do sistema de saúde, o texas deixou todas as explicações nas mãos de associações particulares.
quem procurar por informação na internet não tem melhor sorte. o site oficial do obamacare, através do qual os norte-americanos podem comprar seguros de saúde, não tem tido capacidade para suportar os milhões de visitas que recebe e está quase sempre inacessível.
terminado o braço-de-ferro, os eua parecem habituados à ideia de que a polarização, o extremismo e a incapacidade de acordo são ‘o novo normal’ na política norte-americana. a economia, pelo contrário, rejeita a instabilidade. desde 2010, e segundo números da consultora macroeconomic advisers citados pelo financial times, as disputas entre democratas e republicanos em washington roubaram já 1% do pib e destruíram dois milhões de empregos.